A teoria do desvio produtivo: inovação na jurisprudência do STJ em respeito ao tempo do consumidor
ESPECIAL
No mundo contemporâneo, marcado pelas rotinas
agitadas e pelos compromissos urgentes, pensar em tempo significa muito mais
lidar com a sua escassez do que com a sua abundância. Se tomado como um tipo de
recurso, o tempo é caro e finito; se concebido como uma espécie de direito, o
tempo é componente do próprio direito à vida, já que é nele que concretizamos a
nossa cada vez mais atarefada existência. Se é questão de direito, o tempo
também é questão de justiça.
O tempo é precificado – integra a remuneração da
jornada de trabalho, o pagamento do período de aula – e é benefício – o tempo
de férias, o tempo livre com a família. Exatamente por ser limitado e valioso,
uma das principais frustações cotidianas é a perda de tempo.
No Brasil, um tipo específico de ser humano,
conhecido como consumidor, tem sido constantemente alvo dessa subtração de
tempo, especialmente em razão das longas jornadas a que costuma ser submetido
ao se deparar com defeito em um produto ou serviço. Embora o Código de Defesa
do Consumidor (CDC) tenha estabelecido mecanismos em favor daqueles que são
prejudicados por falhas dos fornecedores, ainda são corriqueiros os relatos de
intermináveis ligações para resolver um problema com uma empresa, ou de demoras
injustificáveis para atendimento em uma agência bancária.
A constatação do tempo do consumidor como recurso
produtivo e da conduta abusiva do fornecedor ao não empregar meios para
resolver, em tempo razoável, os problemas originados pelas relações de consumo
é que motivou a chamada teoria do desvio produtivo.
Precursor do estudo do tema no Brasil, o jurista
Marcos Dessaune descreve, no artigo "Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo
do Consumidor: um panorama" (disponível em edição da revista Direito em Movimento, da
Escola da Magistratura do Rio de Janeiro), que o desvio produtivo é o evento
danoso que se consuma quando o consumidor, sentindo-se prejudicado em
razão de falha em produto ou serviço, gasta o seu tempo de vida – um tipo de
recurso produtivo – e se desvia de suas atividades cotidianas para resolver
determinado problema.
Segundo o doutrinador, a atitude do fornecedor ao
se esquivar de sua responsabilidade pelo problema, causando diretamente o
desvio produtivo do consumidor, é que gera a relação de causalidade existente
entre a prática abusiva e o dano gerado pela perda do tempo útil.
O tempo perdido e a substituição de produto
defeituoso
Apesar de estar, de alguma forma, presente na
jurisprudência histórica do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre o direito
do consumidor, a teoria do desvio produtivo teve aplicação expressa a partir de
meados de 2018. Os casos analisados envolveram, em especial, a possibilidade de
condenação dos fornecedores por danos morais coletivos, e tiveram como relatora
a ministra Nancy Andrighi.
No âmbito dos julgamentos colegiados, um dos
primeiros precedentes foi o REsp 1.634.851,
no qual a Terceira Turma analisou ação civil pública em que o Ministério
Público do Rio de Janeiro buscava que a empresa Via Varejo sanasse vícios em
produtos comercializados por ela no prazo máximo de 30 dias, sob pena da
substituição do produto ou do abatimento proporcional do preço.
Para a Via Varejo, nos termos do artigo 18 do CDC,
não seria possível concluir pela existência de responsabilidade solidária do
comerciante pelo saneamento do vício do produto antes do prazo de 30 dias.
Relatora do recurso, a ministra Nancy Andrighi
apontou que o consumidor, não raramente, trava verdadeira batalha para ter
atendida sua legítima expectativa de obter o produto adequado ao uso, em sua
quantidade e qualidade.
Essa "peregrinação" do consumidor,
afirmou a magistrada, começa pela tentativa – muitas vezes frustrada – de
localizar a assistência técnica mais próxima de sua residência ou de seu local
de trabalho, envolvendo também o esforço de agendar uma visita técnica da
autorizada.
Para a ministra, essas tarefas "têm,
frequentemente, exigido bastante tempo do consumidor, que se vê obrigado a
aguardar o atendimento no período da manhã ou da tarde, quando não por todo o
horário comercial".
Nesse sentido, a relatora apontou que o fornecedor,
ao desenvolver atividade econômica em seu próprio benefício, tem o dever de
participar ativamente do processo de reparo do bem, intermediando a relação
entre cliente e fabricante e diminuindo a perda de tempo útil do
consumidor.
O tempo perdido no atendimento precário de agências
bancárias
A teoria do desvio produtivo voltou a ser aplicada no REsp 1.737.412, originada de ação civil pública ajuizada pela Defensoria Pública de Sergipe contra o Banco de Sergipe, para que a instituição financeira cumprisse, entre outras medidas, as regras de tempo máximo para atendimento presencial nas agências.
Em primeiro grau, o juiz condenou o banco a
disponibilizar pessoal suficiente para o atendimento nos caixas, a fim de que
fosse possível respeitar o tempo máximo na fila de atendimento. O magistrado
também condenou a instituição ao pagamento de danos morais coletivos de R$ 200
mil, mas o Tribunal de Justiça de Sergipe afastou a compensação pelos prejuízos
extrapatrimoniais.
Nancy Andrighi explicou que o dano moral coletivo
se diferencia do dano individual – que busca, primordialmente, a restauração
ao status quo anterior ao prejuízo da vítima – e tem o
objetivo de sancionar o responsável pela lesão, inibindo assim a prática
ofensiva. Como consequência, apontou, ocorre a redistribuição do lucro obtido
de forma ilegítima por aquele que ofendeu a sociedade.
Segundo a ministra, um dos principais propósitos do
sistema capitalista – concebido como um sistema de produção de bens e de
prestação de serviços baseado na eficiência e na especialização – é gerar o
máximo de aproveitamento possível dos recursos produtivos disponíveis.
Citando a doutrina de Marcos Dessaune, Nancy
Andrighi comentou que, na sociedade pós-industrial, o consumo de um produto ou
serviço de qualidade, produzido por um fornecedor especializado na atividade,
tem a utilidade subjacente de tornar disponíveis o tempo e as competências que
o consumidor precisaria para produzi-lo para o seu próprio uso.
Dessa análise, de acordo com a relatora, extrai-se
uma espécie de função social da atividade dos fornecedores, relacionada à
otimização e ao máximo aproveitamento dos recursos produtivos disponíveis na
sociedade – entre eles, o tempo.
O tempo perdido e a otimização do lucro empresarial
Nancy Andrighi reforçou que a proteção à
intolerável e injusta perda do tempo útil do consumidor ocorre pelo desrespeito
voluntário das garantias legais, com o nítido intuito de otimizar o lucro em
prejuízo da qualidade dos serviços – conduta que justifica a condenação por
danos morais coletivos.
No caso dos autos, a relatora lembrou que a
legislação municipal estabelecia como constrangimento do consumidor tempo de
espera superior a 15 minutos em dias normais e 30 minutos em dias especiais,
mas o banco impunha aos clientes tempo de espera que ultrapassava duas horas.
"A instituição financeira recorrida optou por
não adequar seu serviço a esses padrões de qualidade, impondo à sociedade o
desperdício de tempo útil e acarretando violação ao interesse social de máximo
aproveitamento dos recursos produtivos", concluiu a ministra ao
restabelecer a condenação por danos morais coletivos.
O tempo perdido em longas esperas no caixa
eletrônico
Também com base na teoria do desvio produtivo, a
Terceira Turma manteve a condenação de dois bancos ao pagamento de danos morais
coletivos de R$ 500 mil cada, em razão de falhas em terminais eletrônicos por
causa do desabastecimento dos caixas. Na ação, o Ministério Público do
Tocantins relatou período de espera superior a 40 minutos para que os
consumidores conseguissem utilizar os terminais.
"É imperioso concluir que a inadequada
prestação de serviços bancários, caracterizada pela reiterada existência de
caixas eletrônicos inoperantes, sobretudo por falta de numerário, e pelo
consequente excesso de espera em filas por tempo superior ao estabelecido em
legislação municipal, é apta a caracterizar danos morais coletivos",
destacou a ministra Nancy Andrighi.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 1634851REsp 1737412REsp 1929288
FONTE: STJ
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