SENSO INCOMUM O indulto, o príncipe, o juiz e o esbofeteamento da nação
Todos já sabem do enredo. O Supremo
Tribunal Federal julgou em 20 de abril de 2022 o deputado federal Daniel
Silveira. Acusado de vários crimes (coação no curso do processo, incitação à
animosidade entre as Forças Armadas e o STF e tentativa de impedir o livre
exercício dos Poderes da União), restou condenado a oito anos e nove meses de
reclusão, em regime inicial fechado, além de multa. Também foi determinada a
perda do mandato do parlamentar e a suspensão de seus direitos políticos
enquanto durarem os efeitos da condenação.
No dia seguinte ao do julgamento, o
presidente da República concedeu o benefício da graça (indulto) mediante decreto
ao parlamentar, de quem é aliado. Nele, o presidente determinou que os efeitos
primários e secundários da condenação fossem anulados.
Pergunta-se: sendo o indulto uma prerrogativa do presidente da República, poderia ele, todavia, ter indultado um aliado seu, colocando, ademais, como razões fundamentais uma adesão ao comportamento do parlamentar, além de fazer uma censura da decisão da Suprema Corte?
Poderia o presidente perdoar crimes
atentatórios ao próprio regime constitucional — envolvendo a própria sobrevivência
da democracia, na medida em que houve também um ataque ao Supremo Tribunal
Federal, que tem a função precípua de ser o intérprete último e guardião da
Constituição?
Bom, já há várias ADPFs tramitando no
STF contra o decreto de indulto. O CFOAB aprovou, em reunião de sua Comissão de
Estudos Constitucionais, no dia 27/4/2022, parecer que propõe que a OAB
ingresse com a respectiva ação (ver aqui e aqui).
Os limites de (qualquer) decisão no
Estado democrático de Direito
Parece evidente que discricionariedade não se confunde com o arbítrio. A melhor
doutrina — brasileira e estrangeira — indica não haver discricionariedade
quanto ao modo e o procedimento pelo qual essa prerrogativa é
exercida. Numa palavra inicial: uma autoridade não pode tudo.
Parece, de pronto, despiciendo
discutir se o processo objeto do indulto deveria ter transitado em julgado ou
não. O problema é mais grave e reside no desvio de finalidade. Isto é, trata-se
de discutir a constitucionalidade do ato.
Ao fazê-lo, em última análise, o
presidente avaliza a conduta criminosa do parlamentar. O presidente da
República torna-se fiador de um criminoso condenado por atentar contra as
instituições republicanas. É disso que se trata. É assim que devemos ler
essa fenomenologia.
O parlamentar atacou o Supremo
Tribunal, a Constituição e, assim, atacou a própria democracia constitucional
brasileira. Isso já se via em Shakespeare, em seu "Henrique 4º", parte
2. Na peça, o filho de Henrique (que logo será Henrique 5º) esbofeteia o Lorde
Chefe da Corte da Inglaterra. E, para surpresa de todos, o Lorde-Juiz
prende o príncipe. Manda-o ao cárcere. O Lorde-Juiz mostra que quem
foi esbofeteado foi o Estado da Inglaterra. Ele, Juiz, representava o Rei. O
Estado. As Instituições. "Vossa Grandeza esqueceu meu posto",
diz o Juiz ao então príncipe. A literatura parece sempre estar à frente do seu
tempo.
Decretando "graça
constitucional" a um aliado político, não apenas perdoando
como, ainda, dizendo não ter havido crime, Bolsonaro ofende os mesmos
princípios desrespeitados pelo criminoso. Para usar a linguagem
shakespeariana, esbofeteia o juiz. E a República. Se quem ataca a democracia
usa a democracia para fazer isso, de que modo a própria democracia poderá sair
desse paradoxo?
O precedente recente do STF fulmina o
decreto de indulto. Disse o STF (voto ministro Alexandre de Morais na ADI
5.874) "A análise da constitucionalidade do Decreto de Indulto
deverá, igualmente, verificar a realidade dos fatos e também a coerência lógica
da decisão discricionária com os fatos. Se ausente a coerência, o indulto
estará viciado por infringência ao ordenamento jurídico constitucional e, mais
especificamente, ao princípio da proibição da arbitrariedade dos poderes
públicos que impede o extravasamento dos limites razoáveis da
discricionariedade, evitando que se converta em causa de decisões desprovidas
de justificação fática e, consequentemente, arbitrárias." O
precedente é autoexplicativo. O contexto (realidade dos fatos) aponta para a
irrazoabilidade do decreto, assim como é evidente a falta de coerência lógica
da decisão de Bolsonaro.
Indultos são para resolver problemas;
não para criá-los e tampouco servem para ofender o Poder Judiciário
Presidentes não são reis eleitos. Há limites. Sob o pretexto de estar exercendo
uma prerrogativa constitucional em abstrato, o presidente da República está
(i) enfrentando uma decisão soberana do
Supremo Tribunal e
(ii) subscrevendo as ofensas, os ataques, e as ameaças sofridas pela
Suprema Corte. É esse o cerne da discussão.
Dizendo não ter havido crime, o
presidente da República coloca-se em posição de superintérprete da
Constituição. E, na democracia, não há espaço para superinterpretações. Se o STF
decidiu quais são os atos que ferem a democracia e ao próprio STF, não pode ser
o presidente que se arvorará no intérprete do intérprete. O presidente
não é o superego da nação. Há abuso de competência. Quem guarda a Constituição
Federal é o STF, não o presidente da República.
É preciso dizer que a Constituição
não pensou no indulto individual — ou mesmo as outras disposições do Artigo 84
— como um botão de implosão do sistema, fundamentalmente
porque deve ser lida como um todo e não a partir de dispositivos que
estabelecem prerrogativas, mas não permitem que estes sejam acionados ao bel
prazer do chefe do Poder Executivo. Isso é elementar. Uma leitura
enviesada, anarco-textualista (assim como existem os
anarco-capitalistas, existem os anarco-textualistas), poderia levar, nessa
linha de implosão sistêmica, por exemplo, à intervenção das Forças Armadas nos
termos da "dicção" do artigo 142 da CF — leitura essa que já foi
sepultada pela Suprema Corte brasileira.
Premissa básica, então, é que a
decisão por indultar alguém deve atender, especialmente, ao interesse público e
não pode — sob nenhuma perspectiva — ter o condão de ferir o princípio da
impessoalidade, de modo que o agente político deve manter equidistância e
imparcialidade na concessão do indulto.
Dizendo de outro modo, não é porque
em outro contexto, outro tipo de indulto, geral, concedido por outro
presidente, foi tido como legal que isso significa que todo indulto ou
graça ou perdão é legal, à conveniência do presidente. O próprio
julgado reconhece que há limites e que a questão é sempre passível de exame do
Judiciário. Endossar os ataques, as ofensas e as ameaças de um criminoso
imediatamente após sua condenação por parte do Supremo Tribunal parece ser um
desses limites. Do contrário, fracassa(re)mos — em uma teoria de precedentes,
em uma compreensão sobre prerrogativas presidenciais, fracassamos enquanto
república constitucional.
Diante da extensa jurisprudência
elencada, percebe-se que o caso concreto demonstra um evidente desvio de
finalidade. Antes de ser algo, nunca foi constitucional.
Numa palavra final: parafraseando
Michael Stolleis: o Brasil tem relutância em olhar no espelho. Por
isso, não se pode fazer uma "avaliação gentil" dos atos autoritários
que remontam ao antigo regime. Somente uma avaliação gentil salvaria o decreto
presidencial da inconstitucionalidade.
Apelo a Shakespeare e ao seu Henrique
IV. O príncipe esbofeteara o juiz. Que o prendera. O lorde-juiz justifica
seu ato tomado contra o príncipe, dizendo:
"Vendo em vós o ofensor de vosso
pai, foi que fiz uso enérgico de toda a minha autoridade, a fim de enviar-vos
para a prisão".
E eis a resposta do Rei:
"— Tendes razão, Juiz; é com
equidade que pesais isso tudo; conservai, pois, a espada e a balança. Só desejo
que vossas honras cresçam até que a vida vos chegue, para verdes que meu filho
vos ofende e obedece como o fiz."
E arremata:
"— Possa eu também viver
para as palavras repetir de meu pai: 'Feliz me julgo por ter um
servidor de tanta têmpera, que se atreve a julgar meu próprio filho, e não
menos feliz por ter um filho que assim entrega sua grandeza ao braço da
Justiça'."
Assim o bardo nos mostra como ocorreu
o confronto na Inglaterra entre o filho do rei e o juiz. Entre Executivo e
Judiciário.
A resposta de Henrique 5º mostra a
grandeza que deve ter um chefe de Estado.
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Lenio Luiz Streck é jurista, professor de
Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e
Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico,
28 de abril de 2022, 8h00
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