Legalidade, discricionariedade, proporcionalidade: o controle judicial dos atos administrativos na visão do STJ
ESPECIAL
13/03/2022 06:55
O ato
administrativo – espécie de ato jurídico – é toda manifestação unilateral de
vontade da administração pública que, agindo nessa qualidade, tenha por fim
imediato resguardar, adquirir, modificar, extinguir ou declarar direitos, ou,
ainda, impor obrigações aos administrados ou a si própria.
Esse é um dos temas
mais estudados no âmbito do direito administrativo e, da mesma forma, um dos
mais frequentes nas ações ajuizadas contra a administração pública. Em razão do
poder discricionário da administração, nem todas as questões relativas ao ato
administrativo podem ser analisadas pelo Judiciário – que, em geral, está
adstrito à análise dos requisitos legais de validade, mas também deve aferir o
respeito aos princípios administrativos, como os da razoabilidade e da
proporcionalidade.
Cotidianamente, o
Superior Tribunal de Justiça (STJ) é acionado para estabelecer a correta
interpretação jurídica nos conflitos que envolvem esse tema.
Ato que elimina
candidato de concurso público pode ser revisto
No julgamento
do AREsp 1.806.617,
a Segunda Turma destacou que a discricionariedade administrativa não é imune ao
controle judicial, especialmente diante da prática de atos que impliquem
restrições a direitos dos administrados – como a eliminação de concurso público
–, cabendo à Justiça reapreciar os aspectos vinculados do ato administrativo
(competência, forma e finalidade, além da razoabilidade e da
proporcionalidade).
Com esse
entendimento, os ministros acolheram recurso especial de um candidato reprovado
na fase de investigação social em concurso da Polícia Militar do Distrito
Federal (PMDF) por ter admitido o uso de drogas oito anos antes do certame.
Ao determinar a
reintegração do candidato ao concurso, o colegiado considerou, entre outras
razões, o fato de ele já exercer um cargo no serviço público; o longo período
desde que teve contato com entorpecentes e a sua aprovação na investigação
social em outro concurso para a carreira policial, no Maranhão.
Na avaliação do relator, ministro Og Fernandes, impedir o candidato de prosseguir no certame, além de revelar uma postura contraditória da administração – que reputa como inidôneo um candidato que já é integrante dos seus quadros – acaba por aplicar uma sanção de caráter perpétuo, "dado o grande lastro temporal entre o fato tido como desabonador e o momento da investigação social".
Controle
jurisdicional de critérios de correção de provas em concurso
A jurisprudência do
STJ segue o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), firmado no
julgamento do Tema 485,
segundo o qual, em regra, não cabe ao Poder Judiciário se imiscuir nos
critérios de correção de provas e de atribuição de notas em concurso público,
visto que sua atuação deve se limitar ao controle da legalidade do certame. Em
alguns casos, a contestação de candidatos aos critérios de correção da banca
examinadora pode envolver uma controvérsia sobre legalidade.
Sob a relatoria do
ministro Herman Benjamin, a Segunda Turma deu provimento ao RMS 58.373,
interposto por candidatos de um concurso para juiz substituto no Rio Grande do
Sul, e reconheceu a nulidade da prova prática de sentença cível e criminal,
determinando que outra fosse realizada pela banca examinadora.
Os candidatos
alegaram ilegalidade em razão da falta de transparência quanto aos critérios de
correção das provas práticas, pois não foram divulgados os espelhos com a
atribuição das notas aos itens considerados necessários. Segundo eles, os
parâmetros divulgados eram genéricos, o que prejudicou a sua defesa no âmbito
administrativo.
No caso, o
magistrado verificou que o espelho de prova apresentado pela banca possuía
padrões de resposta genéricos, sem detalhar quais matérias a comissão entendia
que deveriam ser abordadas para que a resposta fosse correta, o que
impossibilitou aos candidatos o exercício do contraditório e a ampla defesa.
Somente após a
interposição do recurso administrativo, afirmou o relator, é que a
administração apresentou, de forma detalhada, as razões adotadas para a fixação
das notas, "invertendo-se a ordem lógica para o exercício efetivo do
direito de defesa, em que primeiro o candidato deve ter conhecimento dos reais
motivos do ato administrativo para depois apresentar recurso administrativo
contra os fundamentos empregados pela autoridade".
Por identificar
ilegalidade no ato de divulgação do espelho de prova, Herman Benjamin entendeu
que o caso se amoldava à ressalva da parte final do precedente firmado pelo
STF: "Não compete ao Poder Judiciário substituir a banca examinadora para
reexaminar o conteúdo das questões e os critérios de correção utilizados, salvo
ocorrência de ilegalidade ou de inconstitucionalidade".
Motivação deve ser
anterior ou concomitante ao ato
Ao lembrar que a
motivação do ato administrativo deve ser anterior ou concomitante à sua
prática, a Primeira Turma negou recurso especial com o qual o Estado do Piauí
pretendia manter a remoção de um policial militar da cidade de Teresina para
Bom Jesus.
O colegiado
acompanhou o relator do AREsp 1.108.757,
ministro Napoleão Nunes Maia Filho (aposentado), que considerou ilícito o fato
de a motivação para a remoção do policial ter sido apresentada só após a
prática do ato administrativo.
"Caso se
permita a motivação posterior, dar-se-á ensejo para que se fabriquem, se forjem
ou se criem motivações para burlar eventual impugnação ao ato", afirmou.
Para o ministro, não se pode admitir que, diante da contestação na via judicial
ou administrativa, o gestor construa uma motivação para validar o ato
administrativo.
O magistrado lembrou que o princípio
da motivação regula a condução dos atos administrativos que negam, limitam ou
afetam direitos e interesses do administrado. Segundo ele, para que o ato
administrativo seja válido, deve observar, entre outros, os princípios da
impessoalidade, da licitude e da publicidade – pilares do direito
administrativo –, que se fundem na chamada motivação, que é a apresentação das
razões fáticas ou jurídicas determinantes da expedição do ato.
Controle de atos
administrativos de estabelecimento prisional
No REsp 1.378.557,
a Terceira Seção unificou o entendimento das turmas de direito criminal e
estabeleceu que, embora o juiz da vara de execuções penais possa exercer,
quando provocado, o controle de legalidade dos atos administrativos
praticados pelo diretor do presídio, não lhe é permitido adentrar em matéria de
atribuição exclusiva da autoridade administrativa, como a instauração de
procedimento para apuração de falta disciplinar pelo preso, sob pena de afronta
ao princípio da legalidade.
O colegiado manteve
acórdão no qual o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) considerou
nula a decisão do juízo da Vara de Execução Penal de Porto Alegre que instaurou
procedimento judicial para apurar o cometimento de falta disciplinar por um
detento e, após a manifestação da defesa e do Ministério Público na audiência
de justificação, reconheceu a prática de falta grave e determinou a alteração
da data-base para futuros benefícios.
Os ministros
acompanharam a conclusão do TJRS de que a sanção disciplinar constitui ato
administrativo vinculado, necessariamente precedido de procedimento
administrativo com a garantia do direito de defesa, cuja competência é do
administrador do presídio.
O relator, ministro
Marco Aurélio Bellizze, lembrou que, no âmbito da execução penal, a atribuição
de apurar a conduta faltosa do detento, assim como verificar se ela corresponde
a uma falta leve, média ou grave, conforme a norma legal, é do diretor do
presídio, em razão de ser o detentor do poder disciplinar.
"O diretor do
presídio deve apurar a conduta do detento, identificá-la como falta leve, média
ou grave, aplicar as medidas sancionatórias que lhe competem, no exercício de
seu poder disciplinar, e, somente após esse procedimento, quando ficar
constatada a prática de falta disciplinar de natureza grave, comunicar ao juiz
da vara de execuções penais para que decida a respeito das referidas sanções de
sua competência, sem prejuízo daquelas já aplicadas pela autoridade
administrativa", afirmou Bellizze.
Prazo prescricional
para impugnar atos com nulidade
Mesmo no caso de
ato administrativo contaminado por nulidade, os efeitos decorrentes não poderão
ser afastados se, entre a data de sua prática e o ajuizamento da ação, já tiver
transcorrido o prazo prescricional previsto para a correspondente hipótese
fática, salvo flagrante inconstitucionalidade.
O entendimento foi
aplicado pela Terceira Turma no julgamento do REsp 1.782.024,
em que o colegiado reconheceu a prescrição de ação na qual o São Paulo Futebol
Clube buscava a decretação de nulidade da marca ST Sócio Torcedor. Os ministros
aplicaram a regra do artigo 174 da Lei de Propriedade Industrial (LPI), que
fixa em cinco anos o prazo para declarar a nulidade do registro, contados da
data de sua concessão.
O recurso teve
origem em ação anulatória movida pelo São Paulo, em que foi discutida a
anulação do registro de exclusividade de marca. A concessão da marca ST Sócio
Torcedor ocorreu em 2002, e o processo de anulação foi proposto em 2010.
A relatora do
recurso, ministra Nancy Andrighi, destacou em seu voto que o artigo 54 da Lei 9.784/1999 é regra geral destinada
ao administrador público, que lhe confere o direito potestativo de anular seus
próprios atos no prazo de cinco anos, sob pena de convalidação pelo decurso do
tempo.
Para a magistrada,
entender que a ação de nulidade seria imprescritível equivaleria a esvaziar
completamente o conteúdo normativo do dispositivo invocado (artigo 174 da LPI),
"fazendo letra morta da opção legislativa e gerando instabilidade, não
somente aos titulares de registro, mas também a todo o sistema de defesa da
propriedade industrial".
Ao concluir o voto,
a ministra afirmou que a imprescritibilidade não constitui regra no direito
brasileiro, sendo admitida somente em hipóteses "excepcionalíssimas",
que envolvem direitos da personalidade, estado das pessoas ou bens públicos, e
que casos como o do recurso em julgamento devem se sujeitar aos prazos
prescricionais do Código Civil ou das leis especiais.
Esta
notícia refere-se ao(s) processo(s):AREsp 1806617RMS 58373AREsp 1108757REsp 1378557REsp 1782024
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