A perda do que nunca se teve: a evicção na jurisprudência do STJ
ESPECIAL
20/03/2022 06:55
O vocábulo "evicção" vem do latim evictio e significa desapossar judicialmente ou recuperar uma coisa. Para o direito civil, evicção é a perda de um bem por ordem judicial ou administrativa, em razão de um motivo jurídico anterior à sua aquisição.
Em outras palavras, é a perda de um bem pelo adquirente, em consequência de reivindicação feita pelo verdadeiro dono. Um exemplo de evicção se dá quando alguém vende um objeto e, posteriormente, descobre-se que ele não pertencia ao vendedor, mas a um terceiro.
Como explicou o ministro do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) Paulo de Tarso Sanseverino, no Recurso Especial
1.342.345, a evicção, segundo os artigos 447 e seguintes do Código Civil, consiste na perda
total ou parcial da propriedade de bem adquirido em virtude de contrato
oneroso, por força de decisão judicial ou ato administrativo praticado por
autoridade com poderes para a apreensão da coisa – por exemplo, um delegado de
polícia ou a Receita Federal.
Segundo Sanseverino, além das hipóteses
tradicionais de perda da coisa por decisão judicial, passou-se a reconhecer a
ocorrência de evicção também nos casos de apreensão por ato administrativo
praticado por autoridade com poderes para isso.
"A jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça firmou-se nesse sentido, exigindo apenas que a apreensão pela
autoridade administrativa decorra de fato anterior à aquisição do bem",
afirmou.
Sobre os efeitos da evicção, Sanseverino observou
que o artigo 450 do Código Civil estabelece que o
adquirente que perdeu o bem pode postular as seguintes medidas: restituição
integral do preço pago; indenização dos frutos que tiver sido obrigado a
restituir; indenização pelas despesas dos contratos e demais prejuízos
resultantes da evicção; e ressarcimento das despesas processuais com custas e
honorários de advogado.
Nesta matéria, são apresentados alguns julgados do
STJ que permitem compreender com mais clareza quando é possível falar de
evicção, quais são as consequências desse instituto e qual é o prazo para
pleitear eventual indenização pela perda do bem.
Restituição integral do valor
A jurisprudência do STJ se firmou no sentido de que
o evicto, pela perda sofrida, tem o direito à restituição integral do valor do
bem, calculado ao tempo em que dele foi desapossado – ou seja, ao tempo em que
se evenceu.
Com base nesse entendimento, a Quarta Turma, por
unanimidade, em setembro de 2020, negou o pedido para analisar recurso especial
que defendia que a restituição correspondente a um imóvel, em decorrência do
reconhecimento da evicção, considerasse o valor do negócio celebrado entre as
partes litigantes, e não o preço de mercado apurado em perícia (AREsp 1.587.124).
No mesmo sentido, foram apreciados o AREsp 363.825 e
o REsp 132.012,
quando a corte concluiu que a pessoa condenada a fazer o ressarcimento deveria
pagar ao evicto o valor do bem apurado no momento em que se deu a evicção,
correspondente à perda sofrida, como preceitua o artigo 450, parágrafo único, do Código Civil.
Exercício dos direitos resultantes da evicção
Para que o evicto possa exercer os direitos
resultantes da evicção, na hipótese em que a perda da coisa tenha sido
determinada pela Justiça, não é necessário o trânsito em julgado da decisão.
Esse foi o entendimento da Quarta Turma ao apreciar o Recurso Especial
1.332.112.
Segundo o relator, ministro Luis Felipe Salomão, há
situações em que os efeitos da privação do bem se consumam a despeito da
existência de decisão judicial ou de seu trânsito em julgado, desde que haja a
efetiva ou iminente perda da posse ou da propriedade, e não uma mera cogitação
da perda ou limitação desse direito.
Para o magistrado, embora o trânsito em julgado
confira o respaldo ideal para o exercício do direito oriundo da evicção, não se
pode ignorar que, muitas vezes, o processo permanece ativo por muitos anos,
ocasionando prejuízos consideráveis advindos da constrição imediata dos bens do
evicto, que aguarda, "impotente", o trânsito em julgado da decisão
que já lhe assegurava o direito.
Salomão lembrou que o Código Civil de 1916 somente admitia a evicção mediante sentença transitada em julgado. Todavia, o Código Civil de 2002, "além de não ter reproduzido esse dispositivo, não contém nenhum outro que preconize expressamente a referida exigência".
Dessa forma, "ampliando a rigorosa
interpretação anterior, jurisprudência e doutrina passaram a admitir que a
decisão judicial e sua definitividade nem sempre são indispensáveis para a
consumação dos riscos oriundos da evicção", concluiu o relator.
Responsabilidade negocial
Para a ministra Nancy Andrighi, a evicção
representa um sistema especial de responsabilidade negocial decorrente da perda
total ou parcial de um direito, atribuído, por sentença, a outrem, cujo direito
é anterior ao contrato de onde nasceu a pretensão do evicto.
"Se tal direito não existe ou se, existindo,
dele não for privado, total ou parcialmente, o reivindicante, não há falar em
evicção", afirmou a magistrada no julgamento do REsp 1.779.055.
No caso julgado pela Terceira Turma, um procurador
munido de procuração em causa própria celebrou contrato de compra e venda de
imóvel com terceiros, mas a propriedade do mandante foi considerada inexistente
por sentença.
Dessa forma, a hipótese de evicção foi afastada,
pois o imóvel objeto do contrato celebrado entre o mandatário e os compradores
não coincidia com o imóvel cujo domínio foi atribuído a terceiro por sentença
judicial transitada em julgado, exarada na ação de reintegração de posse
ajuizada pelos compradores.
Assim, para a ministra, se o imóvel objeto do
contrato não existia, seu domínio não poderia ter sido transferido, pois isso
seria transferir o domínio de nada.
Por outro lado, se o imóvel existe, mas não
corresponde ao objeto da ação de reintegração de posse ajuizada pelos
compradores, não foram eles privados do bem que consta da escritura. "Em
nenhuma das duas hipóteses, portanto, se caracteriza a evicção", completou
a magistrada.
Pagamento de dívida para evitar evicção
Em abril de 2021, o STJ confirmou o entendimento de
que, se o adquirente de um imóvel afasta a evicção mediante a quitação da
dívida de terceiro, cabe-lhe mover ação de indenização contra quem lhe vendeu o
bem, responsável por salvaguardá-lo dos efeitos de uma possível evicção.
O REsp 1.907.398,
analisado pela Terceira Turma, tratou do caso de uma empresa que adquiriu um
imóvel em 2002, não sem antes se certificar de que não havia pendência judicial
ou fiscal contra a vendedora.
No entanto, algum tempo depois, ela foi
surpreendida com a penhora do bem, determinada em execução fiscal promovida
pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) contra a proprietária anterior.
Para evitar o leilão, a empresa efetuou o pagamento
da dívida previdenciária e, ao ajuizar ação regressiva contra a vendedora,
fundamentou seu pedido no instituto da sub-rogação, previsto no artigo 346, II e III, do Código Civil.
O ministro Villas Bôas Cueva, ao analisar o recurso
da vendedora do imóvel, reformou o acórdão recorrido e esclareceu que não é
adequada a propositura de ação regressiva fundada no instituto da sub-rogação,
se o alienante não era o responsável pelo pagamento da dívida quitada pelo
adquirente.
O magistrado lembrou que a jurisprudência do STJ
entende que, tendo o próprio comprador afastado a evicção mediante a quitação
da dívida de terceiro, cabe-lhe mover ação indenizatória contra o alienante,
para se ressarcir das quantias desembolsadas.
Isso porque, segundo o relator, "os
pressupostos para o reconhecimento do direito de regresso em favor do terceiro
que efetiva o pagamento de determinada dívida para não ser privado de direito
sobre imóvel são substancialmente distintos daqueles necessários para se
reconhecer o dever de indenizar, que pressupõe a existência de dano, culpa e
nexo causal".
Villas Bôas Cueva destacou ainda que, na ação de
indenização, o alienante poderia ser responsabilizado diretamente pelos prejuízos
causados ao adquirente, especialmente se constar da escritura de compra e venda
a inexistência de qualquer ação ou ônus pendente sobre o imóvel.
Transferência livre e desembaraçada de veículo
Caracteriza evicção a inclusão de gravame capaz de
impedir a transferência livre e desembaraçada de veículo objeto de compra e
venda. Essa foi a conclusão da Terceira Turma no julgamento do REsp 1.713.096.
Para o colegiado, a inclusão de um gravame capaz de
reduzir a serventia do veículo também caracteriza a evicção, mesmo inexistindo
a perda da posse ou do domínio do bem por parte do comprador e da agência que
intermediou o negócio.
Conforme a relatora, ministra Nancy Andrighi, não
se sustentou a tese de que a decisão irrecorrível, que libera o veículo de
qualquer restrição em seu cadastro, afasta por completo a alegada evicção,
fundamento para o pedido indenizatório.
"Conquanto, realmente, tenha a adquirente se
mantido na posse do veículo por determinado período de tempo, o fato de ter
sido em seguida constituído o gravame, tornando necessário o ajuizamento de
embargos de terceiro para que ela pudesse obter a respectiva liberação para
efetuar o registro, evidencia o rompimento da sinalagmaticidade das prestações,
na medida em que se obrigou o recorrente – alienante – a promover a
transferência livre e desembaraçada do bem à adquirente, sob pena de responder
pela evicção", afirmou a relatora.
Para Nancy Andrighi, é dever do alienante
transmitir ao adquirente do veículo o direito sem vícios não consentidos. Dessa
forma, fica caracterizada a evicção na hipótese de inclusão de gravame capaz de
impedir a transferência livre e desembaraçada do veículo para o novo
proprietário.
Diante disso, decidiu a turma, "deve ser a
intermediadora do negócio jurídico de compra e venda de veículo ressarcida dos
prejuízos causados pelo alienante, em virtude da resolução do contrato por
conta da ocorrência da evicção".
Em seu voto, Nancy Andrighi mencionou ainda que o
Código de Processo Civil revogou expressamente o artigo 456 do Código Civil de 2002, dispondo o parágrafo 1º do artigo 125 do CPC que, na hipótese de
evicção, o direito regressivo será exercido por ação autônoma quando a
denunciação da lide for indeferida, deixar de ser promovida ou não for
permitida.
Prazo prescricional para ressarcimento por evicção
"Seja a reparação civil decorrente da
responsabilidade contratual ou extracontratual, ainda que exclusivamente moral
ou consequente de abuso de direito, a prescrição das pretensões dessa natureza
originadas sob a égide do novo paradigma do Código Civil de 2002 deve observar
o prazo comum de três anos."
Com base nesse entendimento, a Terceira Turma
julgou o REsp 1.577.229,
interposto em ação de ressarcimento de prejuízo decorrente de evicção.
Como o ordenamento jurídico brasileiro não prevê
expressamente o prazo prescricional para ações de indenização decorrentes da
evicção, o colegiado discutiu qual prazo deveria ser aplicado: o especial, de
três anos, baseado no artigo 206, parágrafo 3º, IV ou V, do Código Civil, ou o
prazo geral, de dez anos, previsto no artigo 205 e aplicado no acórdão recorrido.
Ao decidir, a relatora, ministra Nancy Andrighi,
citou decisão da Segunda Seção, tomada sob o rito dos recursos repetitivos (REsp 1.360.969),
na qual o colegiado firmou o entendimento de que "não há mais suporte
jurídico legal que autorize a aplicação do prazo geral, como se fazia no regime
anterior, simplesmente porque a demanda versa sobre direito pessoal".
De acordo com Nancy Andrighi, como a garantia por
evicção representa um sistema especial de responsabilidade negocial, infere-se
que "a natureza da pretensão deduzida nesta ação é tipicamente de
reparação civil decorrente de inadimplemento contratual, a qual, seguindo a
linha do precedente supramencionado, submete-se ao prazo prescricional de três
anos".
Garantia dos riscos da evicção
Para a Terceira Turma, o risco da evicção não
atinge a instituição financeira que apenas financiou a compra do bem. O entendimento
foi adotado pelo colegiado no julgamento do EREsp 1.342.145, que
eximiu o Banco Volkswagen da obrigação de ressarcir a empresa compradora de um
carro financiado que foi apreendido pela Receita Federal por causa de problemas
na importação. A empresa adquiriu o veículo do primeiro comprador, que lhe
transferiu o financiamento.
De acordo com o relator, ministro Paulo de Tarso
Sanseverino, o dever de garantir os riscos da evicção é restrito ao alienante
do veículo e não se estende à instituição que concedeu o financiamento sem ter
vínculo com o importador.
Inicialmente, um consumidor firmou contrato de
alienação fiduciária com o banco para a aquisição de um Porsche Carrera modelo
911. Depois, vendeu o veículo para uma empresa e repassou o financiamento, com
a anuência da instituição financeira.
O automóvel, porém, foi apreendido pela Receita
Federal devido a irregularidades na importação. A empresa ajuizou ação contra o
espólio do vendedor e o banco. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) não
reconheceu a ilegitimidade passiva do banco, por entender que todos aqueles que
participaram do negócio devem responder pelos prejuízos suportados por
terceiro. Em recurso ao STJ, o banco insistiu na alegação de ilegitimidade.
Em seu voto, Sanseverino explicou que a
responsabilidade pelos riscos da evicção é do vendedor e, desde que não haja no
contrato cláusula de exclusão dessa garantia, o comprador que perdeu o bem
poderá pleitear a restituição do que pagou. No caso julgado, entretanto, o
ministro concluiu que essa restituição não poderia ser exigida do banco.
Isso porque, de acordo com o magistrado,
precedentes do STJ excluem a responsabilidade da instituição financeira em
relação a defeitos do produto financiado: no REsp 1.014.547,
a Quarta Turma isentou o banco porque ele apenas forneceu o dinheiro para a
compra.
"Não há possibilidade de responsabilização da
instituição financeira, que apenas concedeu o financiamento para a aquisição do
veículo importado, sem que se tenha evidenciado o seu vínculo com o
importador", concluiu Sanseverino.
Boa-fé é requisito essencial
Quando reconhecida a má-fé do comprador de imóvel
no momento de fechar o negócio, ele não pode, sob o argumento de ocorrência de
evicção, propor ação de indenização para reaver do vendedor o valor gasto na
aquisição do bem.
A decisão foi dada pelo ministro Marco Aurélio
Bellizze no AREsp 1.597.745,
que confirmou acórdão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso (TJMT) no sentido
da impossibilidade de aplicar o teor do artigo 449 do Código Civil – segundo o qual "tem
direito o evicto a receber o preço que pagou pela coisa evicta, se não soube do
risco da evicção" – em caso que envolveu uma fazenda alvo de litígio.
O imóvel rural foi vendido por preço bem abaixo do
mercado, por estar pendente de julgamento uma discussão possessória. Após a
compra, assumindo o risco de eventual ineficácia no regular exercício da sua
posse, o comprador foi expulso do local e entrou com ação indenizatória para
ter de volta o valor pago.
O espólio do comprador questionou o acórdão,
afirmando que a corte estadual não reconheceu seu direito à restituição do
valor pago ao vendedor, que alienou o imóvel e recebeu, mas não transferiu a
propriedade. Alegou que nunca se soube que havia invasores na área; portanto,
os herdeiros não poderiam sofrer os prejuízos decorrentes da impossibilidade de
complementação da transação.
Segundo Bellizze, para a configuração da evicção e
a consequente extensão de seus efeitos, exige-se a boa-fé do adquirente; porém,
no caso julgado, diante das provas e dos termos contratuais apresentados, o
TJMT concluiu pela ausência de boa-fé e pelo conhecimento prévio acerca dos
problemas possessórios que envolviam o imóvel.
Dessa forma, entendeu o ministro, a
ausência de boa-fé do comprador e o seu conhecimento prévio sobre a situação do
imóvel afastaram o direito à restituição do valor com base na evicção.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 1342345REsp 1587124AREsp 363825REsp 132012REsp 1332112REsp 1779055REsp 1907398REsp 1713096REsp 1577229REsp 1360969EREsp 1342145REsp 1014547AREsp 1597745
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