“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

DIREITO CIVIL ATUAL Lei da Liberdade Econômica é bem vinda, mas não aplicável às relações de consumo


Lei nº 13.874/2019, ao instituir a declaração dos direitos da liberdade econômica, introduziu novos dispositivos para a interpretação e integração de negócios jurídicos e contratos, tendo, inclusive, modificado artigos do Código Civil concernentes à disciplina contratual.

Entendo positivas as modificações efetivadas, na medida em que ao privilegiarem a autonomia da vontade nas relações empresariais e civis paritárias, aumentam a segurança jurídica para o efetivo cumprimento das disposições contratuais pactuadas, fator relevante para o adequado desempenho econômico[1].
 No entanto, aplicar as disposições da Lei no 13.874/2019 às relações de consumo significaria afronta à Constituição Federal, ao microssistema de proteção do consumidor e à própria lei da liberdade econômica.
Em primeiro lugar destaco a expressa dicção do § 1º do art. 1º da Lei no 13.874/2019 que, ao estabelecer quais seriam os ramos do direito abarcados pelas disposições da lei da liberdade econômica não incluiu o direito do consumidor[2]. Portanto, o silêncio eloquente da lei demonstra que ela não é apta a disciplinar as relações de consumo.
Ademais, a interpretação sistemática da  Lei no 13.874/2019 permite identificar que o seu objetivo primordial, ao estabelecer a declaração dos direitos da liberdade econômica, foi o de promover a livre inciativa, impondo limites à regulação estatal da atividade econômica e conferir ampla liberdade no âmbito das relações empresariais e civis paritárias. Tal lógica não é compatível com os contratos de consumo, caracterizados pela relação intrinsicamente desigual entre as partes que os celebram, dada a vulnerabilidade dos consumidores frente ao fornecedores.
Aludida incongruência fica clara com a análise de normas específicas da Lei da Liberdade Econômica. Por exemplo, o seu art. 3º, VIII inclui dentre os direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, “a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública”.
O dispositivo deixa claro que possui a sua aplicação restrita ao direito empresarial. Ademais, em conjunto com o artigo 421-A por ela introduzido no Código Civil, positiva o conceito de contratos empresariais paritários, categoria específica há muito tempo defendida pela doutrina[3].
Portanto, fica claro que as inovações efetivadas pela Lei no 13.874/2019 no regime contratual possuem como escopo principal as relações empresariais paritárias. Como as relações de consumo são essencialmente desiguais, não há ensejo à aplicação das normas introduzidas pela lei da liberdade econômica incompatíveis com o microssistema de proteção do consumidor.
Cumpre acentuar o caráter especial de que se revestem as normas de proteção do consumidor, que compõem um efetivo e coerente microssistema jurídico, com validade derivada da Constituição Federal, que elevou a defesa do consumidor à categoria de direito fundamental (artigo 5º, XXXII) e de princípio conformador da ordem econômica (art. 170, V), sendo a sua regulamentação por lei ordinária uma imposição constitucional (artigo 48 do ADCT).
O Supremo Tribunal Federal em importante precedente reconheceu que a matriz constitucional empresta validade a uma série de normas que protegem o consumidor, podendo, assim, impor limites proporcionais à livre iniciativa permite ao legislador impor limites à liberdade de iniciativa através da proteção do consumidor[4].
A Suprema Corte interpretou ainda, que os dispositivos do Código de Defesa do Consumidor aplicam-se a todos os contratos derivados de uma relação de consumo, não havendo imunidade de qualquer setor econômico[5].
Neste contexto, as normas de defesa do consumidor, ao integrarem um microssistema próprio, sempre terão natureza de leis especiais, prevalecendo sobre as demais normas no que tange à incidência sobre as relações de consumo[6]
Como a lei de liberdade econômica não contém nenhuma regra específica acerca de contrato de consumo, não há revogação tácita de qualquer dispositivo do Código de Defesa do Consumidor.
Assim, inaplicáveis  às relações de consumo os dispositivos da Lei de Liberdade Econômica que disciplinam as relações contratuais de forma diversa daquela efetivada pelo microssistema de proteção do consumidor.
Destaco, por exemplo, a redação conferida pelo artigo 7º da Lei da Liberdade Econômica ao artigo 113, § 2º do Código Civil, que confere aos contratantes a prerrogativa de livremente pactuarem regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.
Tal regra é perfeitamente aplicável aos contratos empresariais paritários. Por outro lado, permitir que o contrato de consumo estipulasse regras hermenêuticas diversas das previstas em lei implicaria em afronta ao artigo 51, XV do Código de Defesa do Consumidor, que determina serem nulas de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que “estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor”.
Neste contexto, não seria válido estipular em contrato de consumo que as cláusulas seriam interpretadas de maneira mais favorável ao fornecedor e não ao consumidor, já que tal avença iria contrariar expressamente o artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor.
 Portanto, é nula a cláusula de contrato de consumo que contrariar norma prevista em lei que pertença ao microssistema de proteção do consumidor. Entendo que o artigo 3º, VIII da Lei da liberdade econômica não tem o condão de validar cláusula com tal característica, por ser inaplicável aos contratos de consumo.
Da mesma forma, não são aplicáveis aos contratos de consumo as restrições à revisão dos contratos estabelecidas pelos artigos 421 e 421-A do Código Civil, na redação a eles conferida pelo artigo 7º da Lei da Liberdade Econômica.
Com efeito, estipula o parágrafo único do artigo 421 do Código Civil que “nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.” Já o artigo 421-A  do CC determina em seu inciso III que nos contratos civis e empresariais paritários e simétricos “a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”.
Evidentemente, tais disposições não se aplicam às relações de consumo. Se a lógica das relações contratuais privadas paritárias, sobretudo as de natureza empresarial é compatível com a intervenção mínima do Estado, seja na edição de normas, seja na intervenção judicial, o raciocínio é forçosamente outro na análise dos contratos de consumo.
Com efeito, a vulnerabilidade do consumidor é particularmente incidente na relação contratual estabelecida com o fornecedor, principalmente tendo em conta que a regra absoluta é a pactuação de contratos de adesão, nos quais o consumidor simplesmente adere ao pacto redigido inteiramente pelo fornecedor.
Justifica-se, assim, regra mais ampla de revisão contratual, tendo o Código de Defesa do Consumidor incluído em seu artigo 6º, V, dentre os direitos básicos do consumidor, “a sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.
As hipóteses que permitem a revisão são mais alargadas do que as do Código Civil, bastando ocorrer fato superveniente que torne a prestação excessivamente onerosa para o consumidor, como expressamente reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça[7].
Destaco, por fim, as modificações operadas pela Lei no 13.874/2019 em relação à desconsideração da personalidade jurídica. Houve a inserção do artigo 49-A no Código Civil, que reforçou a licitude da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. Já a nova redação conferida ao artigo 50 do Código Civil manteve como hipótese autorizadora da desconsideração da personalidade o abuso da personalidade  jurídica, caracterizada pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, cujos respectivos conceitos foram delineados pelos parágrafos primeiro,  segundo e quinto do dispositivo.
Por seu turno, o § 4º do artigo 50 do CC esclarece que a mera existência de grupo econômico não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica se o abuso não for caracterizado.
Assim, as modificações efetivadas pela Lei da Liberdade Econômica estabeleceram um limite mais estreito à desconsideração da personalidade jurídica, a fim de restringi-la a hipóteses bem delimitadas.
Porém, não houve qualquer modificação do peculiar regime da desconsideração da personalidade jurídica existente no microssistema de proteção do consumidor. Continuam, assim, prevalecendo a hipótese extremamente ampla do artigo 28, § 5º do Código de Defesa do Consumidor, o qual estabelece que “também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”
Vale destacar que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou há longa data o entendimento de que a insuficiência patrimonial da pessoa jurídica para o pagamento de obrigação pecuniária devida a consumidor possibilita a desconsideração da personalidade jurídica (teoria menor), não sendo necessária a prova de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial (teoria maior)[8]. Portanto, as modificações insertas no Código Civil não são aplicáveis na hipótese de desconsideração de personalidade jurídica requerida para remover obstáculo ao ressarcimento de consumidores.
A Lei da Liberdade Econômica trouxe inovações que trazem maior segurança jurídica para as relações empresariais e civis paritárias podendo, caso bem interpretadas e aplicadas, estimularem o empreendedorismo, o que é relevante para a ansiada retomada do crescimento econômico e consequente geração de empregos no Brasil.
Porém, o entendimento de que as suas normas seriam aptas a derrogar regras do Código de Defesa do Consumidor acerca da desconsideração da personalidade jurídica, revisão dos contratos, interpretação mais favorável ao consumidor ou nulidade de cláusulas abusivas, constituiria em interpretação contrária à Constituição Federal, ao microssistema de proteção do consumidor e à própria lógica da Lei da Liberdade Econômica, direcionada aos contratos empresariais e civis paritários, que possuem natureza diametralmente oposta à desigualdade intrínseca existente nas relações de consumo.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).
[1] NORTH, Douglass. Instituições, mudança institucional e desempenho econômico. São Paulo: Três Estrelas, 2018. O autor destaca a importância de uma eficiente matriz institucional para minimizar os custos de transação típicos da contratação em massa. Ele ressalta, ainda, a relação direta entre trajetórias econômicas de sucesso e a execução eficaz de contratos, que por seu turno está associada a uma matriz institucional apta a propiciar um ambiente com reduzidos custos de transação e direitos de propriedade claramente especificados.
[2] Estabelece o § 1º do art. 1º da Lei no 13.874/2019 que: “O disposto nesta Lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente”.
[3] Forgioni, Paula. Contratos empresariais – teoria geral e aplicação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 69.
[4] Destaco, a título de exemplo o seguinte trecho da ementa de decisão do Supremo Tribunal Federal: “- Em face da atual Constituição, para conciliar o fundamento da livre iniciativa e do princípio da livre concorrência com os da defesa do consumidor e da redução das desigualdades sociais, em conformidade com os ditames da justiça social, pode o Estado, por via legislativa, regular a política de preços de bens e de serviços, abusivo que é o poder econômico que visa ao aumento arbitrário dos lucros”.(STF- ADIQO 319 - Tribunal Pleno - Rel. Min. Moreira Alves, DJ 30.4.93, pág. 7563).
[5] STF – ADI nº 2.591 - Tribunal Pleno - Rel. Min. Eros Grau - DJ . Destaco trecho da fundamentação do voto do Min. Joaquim Barbosa, ao ressaltar que o Código de Defesa do Consumidor contém “normas plenamente aplicáveis a todas as relações de consumo, inclusive aos serviços prestados pelas entidades do sistema financeiro”.
[6] AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado de. O Novo Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor (Pontos de Convergência). Revista da EMERJ, v. 6, n. 24, 2003, p. 14-30.
[7] STJ - REsp 473140 / SP – Rel. p/ o acórdão Ministro Aldir Passarinho Júnior - Segunda Seção – j. em 12/02/2003. Destaco o seguinte trecho da ementa do mais conhecido acórdão em matéria de revisão de contrato de consumo por fato superveniente: “Admissível, contudo, a incidência da Lei n. 8.078/90, nos termos do art. 6º, V, quando verificada, em razão de fato superveniente ao pacto celebrado, consubstanciado, no caso, por aumento repentino e substancialmente elevado do dólar, situação de onerosidade excessiva para o consumidor que tomou o financiamento.
[8] STJ -  REsp nº. 279.273, 3ª T. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julgado em 04.12.2003. Transcrevo o seguinte trecho da ementa: “A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores”.
Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer é professor doutor da Faculdade de Direito da USP e procurador do Estado de São Paulo.

Revista Consultor Jurídico, 30 de dezembro de 2019, 12h21

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