NOVA REGRA - Presunção de "efetiva necessidade" de posse de arma viola Constituição
15 de
janeiro de 2019, 17h48
O decreto que flexibilizou
a posse de armas de fogo, editado nesta terça-feira (15/1) pelo presidente Jair
Bolsonaro (PSL), estabelece que é presumida verdadeira a efetiva necessidade
dos artefatos declarada pelo interessado. Porém, essa regra é inconstitucional
porque a administração pública não pode renunciar à sua competência
discricionária. Ao fazê-lo, ela abre mão do interesse público, pois armas
colocam em risco a vida e a integridade física de todos, afirmam especialistas
ouvidos pela ConJur.
Decreto
do presidente Jair Bolsonaro flexibilizou a posse de armas de fogo.
O Decreto 5.123/2004 estabelece
que, para adquirir arma de fogo, o interessado deve “declarar efetiva
necessidade”. O Decreto 9.685/2019, assinado por Bolsonaro nesta terça, fixou
que essa "efetiva necessidade" é presumida verdadeira: “Presume-se
a veracidade dos fatos e das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva
necessidade a que se refere o inciso I do caput, a qual será examinada pela
Polícia Federal nos termos deste artigo”. Antes, um delegado da PF deveria
verificar as informações, o que, segundo Bolsonaro, era
muito subjetivo.
“Efetiva
necessidade” da posse de arma de fogo é um conceito indeterminado. Como ele não
tem um grau de especificidade suficiente para ter força normativa, ele acaba
gerando mais de uma conduta possível para a administração pública, que irá
adotar a que lhe for mais conveniente, explica o professor de Direito
Constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano. Portanto, a
definição dessa “efetiva necessidade” é uma competência discricionária do
Estado.
A
administração pública pode limitar, via decreto, por exemplo, sua competência
discricionária. No caso, isso ocorreria com a definição de critérios para a
“efetiva necessidade” de se ter armas de fogo. Contudo, o Estado não pode
renunciar à sua competência discricionária, aponta Serrano.
“Quando a
administração pública abre mão do direito a fazer verificações mínimas do que o
cidadão alega como sendo efetiva necessidade, ela exacerba a competência que
tem para estabelecer restrições à competência discricionária. Nesse caso, a
administração pública foi além dessa competência legitima e acabou, na
realidade, outorgando ao cidadão uma fé pública que, nesse caso, ele não deve
ter. Isso porque a arma pode vir a oferecer riscos à vida e à integridade
física de terceiros”, avalia o professor.
De acordo
com ele, o que o Estado está fazendo é deixar de lado seu dever de fiscalizar,
verificar e regular. E a administração, conforme Serrano, não pode fazer isso
porque o interesse público é indisponível. Ao ignorá-lo, o Estado viola a
Constituição, pois tem a obrigação de guiar suas ações por esse norte, destaca
o docente da PUC-SP.
Pedro
Serrano diz que presunção de veracidade contraria o interesse público.
É preciso
que o interessado em obter posse de arma apresente indícios mínimos de que tem
“efetiva necessidade” de possuir uma arma de fogo. Serrano exemplifica: se uma
pessoa diz que é advogada criminalista, que atua em situações de risco e, por
isso, precisa de um revólver, ela deve comprovar que é advogada e que atuou, no
mínimo, em um caso penal.
O
jurista Lenio Streck tem opinião semelhante. A seu ver, o
Estado deve assegurar que apenas quem realmente preencher os requisitos possa
adquirir uma arma de fogo. E isso antes da compra do artefato. Afinal, depois
disso, a administração pública não teria como garantir a apreensão da arma
obtida ilegalmente.
“O ponto
é: se uma for arma comprada e depois for verificada a inautenticidade da
declaração, o que se faz? Busca a arma de volta? Atenção: a presunção de
veracidade funciona só para comprar armas? E se o cidadão for pego em blitz sem
a carteira e afirma que tem? Nesse caso não tem presunção a declaração? O INSS
pede declaração de vida. Não vale a declaração do vivente? No raio-x do
aeroporto: não carrego nada de perigoso. Vão verificar depois a declaração? Os
exemplos são infindáveis. Se valido o decreto no tocante a essa presunção,
deveremos alterar uma série de exigências burocráticas, pois não?”, questiona
Lenio.
Estímulo
à violência
Por sua vez, o professor de Direito Constitucional da Uerj Daniel Sarmentoanalisa que o Decreto 9.685/2019 é inconstitucional por violar a separação de poderes e a competência do Congresso para legislar.
Por sua vez, o professor de Direito Constitucional da Uerj Daniel Sarmentoanalisa que o Decreto 9.685/2019 é inconstitucional por violar a separação de poderes e a competência do Congresso para legislar.
“O
decreto pretensamente regula o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) e o seu
objetivo é oposto ao da lei: armar as pessoas. Todas as unidades da federação,
sem exceção, têm índices de homicídio superiores a 10 por 100 mil habitantes,
conforme o Atlas da Violência de 2018. Ou seja, o decreto libera geral,
contrariando profundamente o espírito da lei. Uma norma infralegal não pode
atentar contra o espirito da regra superior que ela regulamenta”.
Além
disso, o novo decreto contraria os direitos fundamentais à vida e à segurança,
afirma Sarmento. Ele ressalta que “todos os estudos empíricos” comprovam que o
aumento do número de armas em circulação amplia “gravemente” o risco de
homicídios e acidentes. “Brigas de casal, incidentes no trânsito, entre outras
situações, tenderão mais facilmente a gerar resultados fatais”, diz o professor.
Outro
lado
Ana Paula de Barcellos, também professora de Direito Constitucional da Uerj, não considera ilegal a presunção de veracidade da declaração de “efetiva necessidade” da posse de arma de fogo. Até porque essa presunção é relativa e pode ser afastada pela Polícia Federal, aponta.
Ana Paula de Barcellos, também professora de Direito Constitucional da Uerj, não considera ilegal a presunção de veracidade da declaração de “efetiva necessidade” da posse de arma de fogo. Até porque essa presunção é relativa e pode ser afastada pela Polícia Federal, aponta.
“Na minha
avaliação o decreto é compatível nesse ponto com a lei que ele regulamenta
(artigo 4º do Estatuto do Desarmamento). A lei afirma que o interessado deve
‘declarar a efetiva necessidade’ e atender aos requisitos que lista. Não é
incomum, aliás, essa figura da presunção relativa de veracidade de declarações
de particulares: é o que acontece, por exemplo, no caso da declaração de
pobreza por pessoa natural para obter gratuidade de justiça no âmbito do
Judiciário (artigo 99, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil)”, avalia Ana
Paula.
Flexibilização
da posse
O decreto de Bolsonaro facilita a posse de armas de fogo no país. Para conseguir o direito de ter uma arma de fogo, o cidadão deve dizer que mora em um estado considerado violento (mais de 10 homicídios por 100 mil habitantes, critério que engloba todas as unidades da federação), ser profissional de segurança ou viver em área rural.
O decreto de Bolsonaro facilita a posse de armas de fogo no país. Para conseguir o direito de ter uma arma de fogo, o cidadão deve dizer que mora em um estado considerado violento (mais de 10 homicídios por 100 mil habitantes, critério que engloba todas as unidades da federação), ser profissional de segurança ou viver em área rural.
O texto
também amplia o prazo de validade do registro de armas para 10 anos, tanto
para civis como para militares. Permite ainda a aquisição de arma
por proprietários de estabelecimentos comerciais, colecionadores, atiradores
ou caçadores registrados pelo Exército.
Em casas
com crianças, adolescentes e pessoas com deficiências mentais, a pessoa deverá
acrescentar à lista de exigências uma comprovação de que tem cofre ou local
seguro, com tranca, para armazenamento.
Cada
pessoa que preencher os requisitos poderá comprar até quatro armas de
fogo, número que poderá ser ampliado caso haja "caracterização da efetiva
necessidade".
O decreto
foi assinado sob a justificativa de atender ao referendo de 2005, previsto
no Estatuto do Desarmamento, de 2003. O referendo era para a entrada em vigor
do artigo 35 do estatuto, que proibia a venda de armas e munições em todo o
território nacional. A maioria dos consultados foi contra a entrada em vigor do
artigo. A pergunta feita, "o comércio de armas deve ser proibido no
Brasil?", foi respondida com "não" por 64% dos brasileiros.
Sérgio Rodas é correspondente da
revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Revista Consultor
Jurídico, 15 de janeiro de 2019, 17h48
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