Consumidor equiparado: a proteção estendida do CDC
ESPECIAL
28/10/2018 06:51
Pessoas que se
machucam ao escorregar em piso molhado sem sinalização, outras que têm a vida
irremediavelmente comprometida por uma bala perdida em tiroteio iniciado pelos
seguranças de uma loja. Casos assim – menos ou mais cotidianos, menos ou mais
dramáticos – fazem parte da rotina do Judiciário e têm em comum o fato de que a
vítima, embora não haja comprado produtos ou serviços da empresa, foi, de algum
modo, afetada por um evento danoso que a colocou na condição de consumidor por
equiparação.
Conforme explicou a
ministra Nancy Andrighi no REsp 1.125.276,
o conceito de consumidor não está limitado à definição restritiva contida
no caput do artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor (CDC),
devendo ser extraído da interpretação sistemática de outros dispositivos
da Lei 8.078/90.
Surge então a
figura do consumidor por equiparação, ou bystander, “inserida pelo
legislador no artigo 17 do
CDC, sujeitando à proteção do CDC também as vítimas de acidentes derivados do
fato do produto ou do serviço. Em outras palavras, o sujeito da relação de
consumo não precisa necessariamente ser parte contratante, podendo também ser
um terceiro vitimado por essa relação”, afirmou.
Dessa forma, todo
aquele que não participou da relação de consumo, não adquiriu qualquer produto
ou contratou serviços, mas sofreu algum tipo de lesão pode invocar a proteção
da lei consumerista na qualidade de consumidor equiparado.
Piso molhado
Em março deste ano,
o ministro Luis Felipe Salomão foi relator na Quarta Turma de um recurso
originado de ação de reparação movida por um idoso contra o município e um
posto de gasolina (AREsp 1.076.833).
O autor sofreu uma queda e fraturou três costelas ao passar pela calçada do
posto, pois o piso estava molhado. Havia uma mangueira no interior do
estabelecimento que escoava água, porém não existia qualquer sinalização que
alertasse para o perigo no local.
O idoso alegou
negligência do posto por ter deixado escoar água sem providenciar a sinalização
adequada. Também sustentou haver falta de fiscalização dos passeios públicos
por parte do município.
O posto afirmou a
não incidência da lei consumerista no caso, já que não havia fornecido qualquer
produto ou serviço ao autor da ação. Disse que a culpa era exclusiva da vítima
e que se tratava de caso fortuito e de força maior.
O estabelecimento
foi condenado a pagar R$ 6.780,00 por danos morais. O Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul (TJRS) entendeu que incidiam as normas do CDC, já que houve
defeito no serviço, pois o posto não ofereceu a segurança que o consumidor
deveria esperar. Para o tribunal, a lei tutela a “segurança ou incolumidade
física e patrimonial do consumidor”.
Segundo o ministro
Salomão, o entendimento da corte estadual está em conformidade com a
jurisprudência do STJ no sentido da proteção conferida pelo CDC a todos aqueles
que, mesmo sem participar diretamente da relação de consumo, sofrem as
consequências do dano, tendo sua segurança física e psíquica colocada em risco.
Cacos de vidro na
via
No julgamento do REsp 1.574.784,
na Terceira Turma, a ministra Nancy Andrighi também entendeu correta a
equiparação do consumidor, nos termos do artigo 17 da lei consumerista,
conforme decidido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ).
Uma criança se
acidentou ao tentar fugir da colisão com a porta do caminhão de uma
distribuidora de cervejas Schincariol, fabricadas pela empresa Brasil Kirin
Indústria de Bebidas Ltda., que transitava na via com as portas abertas. Ao
desviar da porta, a criança caiu sobre garrafas de cerveja quebradas que haviam
sido deixadas na calçada cinco dias antes pela mesma distribuidora. Ela sofreu
cortes graves no pescoço e outras lesões leves.
O tribunal estadual
manteve a condenação solidária da fabricante e da distribuidora ao pagamento de
danos morais no valor de R$ 15 mil.
Para a ministra
Nancy Andrighi, a jurisprudência do STJ é clara no sentido de que “a
responsabilidade de todos os integrantes da cadeia de fornecimento é objetiva e
solidária, nos termos dos artigos 7º, parágrafo único, 20 e 25 do CDC”, sendo
“impossível afastar a legislação consumerista” e a equiparação da criança a
consumidor, visto que “o CDC amplia o conceito de consumidor para abranger
qualquer vítima, mesmo que nunca tenha contratado ou mantido qualquer relação
com o fornecedor”.
Tiroteio na rua
No REsp 1.732.398,
de relatoria do ministro Marco Aurélio Bellizze, uma jovem pediu
indenização por danos materiais, morais e estéticos em decorrência de ter
sido baleada aos 12 anos de idade, quando retornava da escola e passava por uma
rua onde havia começado um tiroteio. A troca de tiros ocorreu porque os
seguranças privados contratados pelos donos das lojas instaladas no local
reagiram a uma tentativa de roubo, e um dos tiros atingiu a jovem, deixando-a
tetraplégica.
O tribunal estadual
fixou o valor das indenizações por danos morais e estéticos em R$ 450 mil cada.
A decisão foi confirmada pela Terceira Turma do STJ em razão da “gravidade das
lesões sofridas pela autora, que revelam, por si sós, a existência de ofensa à
sua integridade física, psíquica e emocional, não apenas porque dependerá,
muito frequentemente, da ajuda de terceiros ou de recursos tecnológicos, não raramente
de elevado custo, para realizar os atos mais simples do dia a dia, mas também
porque, juntamente com sua saúde, o disparo de arma de fogo afetou grande parte
dos seus sonhos, roubou-lhe a juventude e a impediu de desfrutar da própria
vida de maneira plena, com reflexos de ordem pessoal, social e afetiva” –
conforme apontou Bellizze.
Os comerciantes
sustentaram que o crime de roubo à mão armada caracterizava fortuito externo e
os tiros que atingiram a vítima foram disparados pelos assaltantes.
Segundo Bellizze,
“ao reagirem de maneira imprudente à tentativa de roubo à joalheria, dando
início a um tiroteio, os vigilantes frustraram a expectativa de segurança
legitimamente esperada, a qual foi agravada, no caso, uma vez que a autora foi
atingida por projétil de arma de fogo, sendo o fato suficiente para torná-la
consumidora por equiparação, ante o manifesto defeito na prestação do serviço”.
A causa que
produziu o dano, de acordo com o ministro, não foi o assalto, “que poderia ter
se desenvolvido sem acarretar nenhum dano a terceiros, mas a deflagração do
tiroteio em via pública pelos prepostos dos réus, colocando pessoas comuns em
situação de grande risco, o que afasta a caracterização de fortuito externo”,
além de os vigilantes terem atuado coletivamente “para a produção do resultado
lesivo, advindo não dos disparos em si, mas da ação que desencadeou o conflito
armado. Daí a responsabilização dos estabelecimentos pelos danos ocorridos”.
Explosão em bueiro
Outro caso de
consumidor por equiparação foi reconhecido no AgRg no REsp
589.789, de relatoria do ministro Villas Bôas Cueva, na Terceira
Turma. O caso teve origem em uma ação indenizatória contra a Light Serviços de
Eletricidade S.A. após a explosão em um bueiro em Copacabana, no Rio de
Janeiro.
Os autores pediram
ressarcimento pelos danos materiais, morais e estéticos, porém a Light alegou
que não seria possível a aplicação do CDC ao caso por não haver relação de
consumo a ser tutelada.
O entendimento
unânime da Terceira Turma foi no sentido de que o acórdão do tribunal estadual
estava em perfeita harmonia com a jurisprudência do STJ de que “equipara-se à
qualidade de consumidor, para os efeitos legais, aquele que, embora não tenha
participado diretamente da relação de consumo, sofre as consequências do evento
danoso decorrente do defeito exterior que ultrapassa o objeto e provoca lesões,
gerando risco à sua segurança física e psíquica”, conforme exposto pelo
ministro João Otávio de Noronha no REsp 1.000.329.
Derramamento de
petróleo
No AgInt nos EDcl
no CC 132.505, sob relatoria do ministro Antonio Carlos
Ferreira, a Segunda Seção discutiu o caso de pescadores artesanais do Espírito
Santo que haviam ajuizado ação de reparação de danos contra a Chevron Brasil,
em razão de um vazamento de petróleo ocorrido no litoral do Rio de Janeiro.
O óleo derramado se
espalhou e prejudicou a atividade dos pescadores que moravam no Espírito Santo,
considerados consumidores por equiparação.
O ministro explicou
que tal entendimento estava correto e já havia sido aplicado em hipótese
semelhante na Segunda Seção, quando pescadores foram considerados vítimas de
acidente de consumo, visto que suas atividades pesqueiras foram prejudicadas
por derramamento de óleo (CC 143.204,
da relatoria do ministro Villas Bôas Cueva).
A Justiça do
Espírito Santo afirmou não ser competente para julgar um crime ambiental
ocorrido em outro estado. A Justiça fluminense alegou que, como os pescadores
são consumidores equiparados, poderiam ajuizar ação em seus domicílios,
conforme preconiza o artigo 101, inciso I, do CDC.
Segundo o ministro
Antonio Carlos, havendo a incidência das regras consumeristas, “a competência é
absoluta”, razão pela qual deve ser fixada no domicílio do consumidor, ou seja,
“apesar de o acidente ter ocorrido no litoral do Rio de Janeiro, seus reflexos
danosos se estenderam para outras localidades, entre as quais o território
pesqueiro onde os autores da ação laboravam, que deve ser considerado o local
do fato, para fins de incidência do artigo 100, inciso V, alínea a, do Código
de Processo Civil”.
“Nesse sentido, aplicam-se ao caso as
regras definidoras de competência do artigo 101 do CDC, as quais, nos termos da
jurisprudência do STJ, têm natureza absoluta, podendo ser conhecidas de ofício
pelo juízo, sendo improrrogável, sobretudo quando tal prorrogação for
desfavorável à parte mais frágil”, disse o relator.
Esta notícia refere-se ao(s) processo(s):REsp 1125276AREsp 1076833REsp 1000329REsp 1574784REsp 1732398REsp 589789CC 132505CC 143204
http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Consumidor-equiparado:-a-prote%C3%A7%C3%A3o-estendida-do-CDC
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