PROCESSO FAMILIAR - 40 anos do divórcio no Brasil: uma história de casamentos e florestas
22 de outubro de 2017, 8h00
Em 2017, o divórcio completa 40 anos
no Brasil. A influência do cristianismo[1] fez
com que o divórcio
estivesse banido da maioria dos ordenamentos jurídicos ocidentais, situação que perdurou, pelo menos entre nós, até 1977, com o advento da Emenda Constitucional do Divórcio (EC 9/77) e da Lei do Divórcio (Lei 6.515/77).
estivesse banido da maioria dos ordenamentos jurídicos ocidentais, situação que perdurou, pelo menos entre nós, até 1977, com o advento da Emenda Constitucional do Divórcio (EC 9/77) e da Lei do Divórcio (Lei 6.515/77).
O caminho até o divórcio foi
extremamente árduo, uma verdadeira “batalha”, na célebre expressão consagrada
na obra de Arruda Câmara[2].
Os principais combatentes dessa batalha sempre foram os setores ligados à
Igreja Católica. Nas trincheiras divorcistas não se pode deixar de fazer alusão
ao deputado e senador fluminense Nelson Carneiro. Hoje, é difícil acreditar,
mas se dizia que o divórcio “dissolvia a família”, “reduzia a natalidade”,
“aumentava o aborto e a criminalidade infantil”, “comprometia a educação dos
filhos, pela ruína da autoridade paterna e da piedade filial”. O divórcio era
sintoma da decadência e do egoísmo social, dizia o padre Leonel Franca, em obra
que se tornou famosa nos anos 1950[3].
Até 1977, o casamento era indissolúvel no Brasil, mantendo a legislação
brasileira de então os resquícios coloniais das Ordenações do Reino, as quais,
impregnadas pelo Direito Canônico, consideravam o casamento um sacramento, sem
possibilidade de dissolução.
Há 40 anos, com a Emenda Constitucional 9, de 1977, de autoria do
senador Nelson Carneiro, foi finalmente instituído o divórcio, porém com restrições
que dificultavam a sua utilização, o que amenizou a ira de setores mais
conservadores da sociedade, especialmente aqueles ligados à Igreja Católica. A
dissolução do casamento só era possível após prévia separação judicial por mais
de três anos ou prévia separação de fato por mais de cinco anos, desde que
iniciada antes da data em que promulgada a emenda. O divórcio só poderia ser
requerido uma única vez.
A EC 9/1977 permitiu a aprovação, no
mesmo ano, da Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977, a chamada Lei do Divórcio,
que disciplinou a matéria no âmbito da legislação civil e processual civil,
promovendo as necessárias alterações no Código Civil de 1916[4] e
no CPC de 1973.
A Lei 6.515/77 acrescentou o divórcio
entre as causas pelas quais se dissolvem a sociedade conjugal e o casamento
(artigo 2º), substituindo o desquite pela separação judicial
(artigos 41 a 48). Estava regulamentado, assim, no Brasil, o chamado
sistema dualista: a separação judicial põe termo à sociedade conjugal, ao passo
que o divórcio dissolve o próprio vínculo matrimonial. Fazia-se a distinção
entre terminar e dissolver o casamento[5].
O casamento terminava com a separação judicial, mas só se dissolvia com o
divórcio.
Quarenta anos depois, verifica-se que nem o casamento como instituição
nem a família brasileira foram abalados ou enfraquecidos pelo
permissivo legal, posto à disposição de todos, de livremente dissolverem o
vínculo conjugal.
Isso me fez lembrar um texto do
biólogo Fernando Reinach sobre a importância das queimadas na renovação e
fortalecimento das florestas. Aludindo aos grandes incêndios florestais
ocorridos recentemente nos EUA, o autor os relaciona com o movimento
ambientalista e com a ideia de se manter as florestas intocadas e imutáveis,
com normas rígidas de manejo, a ponto de até os incêndios naturais serem
banidos. Com isso, se pretendeu tornar estático um ambiente dinâmico. A
contenção “de queimadas naturais fez com que a camada de folhas mortas
aumentasse, e quando as queimadas aconteciam eram incontroláveis.
Esses incêndios florestais passaram a matar árvores que normalmente
sobrevivem às queimadas frequentes e fracas, que ocorrem quando a
quantidade de matéria morta no solo é menor. Queimadas fazem parte
da vida de uma floresta saudável”[6].
E conclui afirmando que “fogos, erupções
vulcânicas, alagamentos e morte parecem não somente fazer parte da vida
da floresta, mas são necessários para sua saúde. Tentar manter intocado
e imutável um ecossistema é o mesmo que sufocar sua vitalidade. Conservar
não pode ser mais sinônimo de imutabilidade”[7].
Assim também se verifica com os casamentos e demais relacionamentos
conjugais. Mantê-los intocados e indissolúveis por restrição da lei seria
o mesmo que lhes sufocar a respiração, lhes retirar o ar que respiram,
impedindo a sua renovação e rejuvenescimento, sugando-lhes a vitalidade. O
direito fundamental ao divórcio garante a regeneração da conjugalidade.
Em um passado não tão distante, de monopólio do casamento, como forma de
constituição de família, e de proibição do divórcio, muitos relacionamentos se
petrificavam em um estado de infelicidade imutável e perpétuo. A
indissolubilidade retirava dos parceiros conjugais não apenas a liberdade
de recomeçar uma nova vida afetiva, mas também o interesse em reconstruir e
transformar um relacionamento que se iniciou sob a promessa (inviável) de
perdurar até o resto da vida.
O direito de se divorciar constitui
um direito fundamental, emanação da liberdade no âmbito das relações de
família. No Brasil, desde o advento da Emenda Constitucional 66/2010, o direito
ao divórcio também deixou de ser um direito subjetivo comum, ainda que dotado
de fundamentalidade, para se transformar em um direito potestativo, contra o
qual nem o outro cônjuge nem o Estado-juiz podem se opor[8].
A facilidade atual de dissolução dos vínculos conjugais, antes de
enfraquecê-los, garante o seu vigor, tornando a conjugalidade mais hígida em
substância, marcada agora por uma intensidade plena de afetos, que substitui
uma longevidade forçada e vazia.
A dissolubilidade, ainda que em potência, conscientiza os cônjuges sobre
a importância do papel de cada um na manutenção, consolidação e fortalecimento
dos laços afetivos, sabedores de que o afeto que os une constituirá, sempre e
sempre, um “construído”, e jamais um “dado”. Os relacionamentos conjugais são
ontologicamente finitos e sua longevidade depende da base afetiva que se
constrói e que se renova no dia a dia da convivência.
Nem sempre isso é possível. Acidentes
acontecem. Vulcões entram em erupção. O outono derruba as folhas, e o verão
provoca as queimadas, mas um novo relacionamento haverá de emergir em
substituição ao que foi soterrado pelas cinzas do tempo e da rotina. E como a
floresta soterrada pela erupção do Mount St. Helens, um vulcão adormecido
no meio de uma das florestas mais antigas dos Estados Unidos, “sementes
soterradas germinaram e perfuraram a camada de cinzas. Uma vegetação
rica e diversa atraiu novas espécies de insetos e mamíferos. As árvores
começaram a voltar. O que impressionou os ecologistas é que a biodiversidade
dessa floresta jovem é muito maior que a encontrada nas florestas
com mais de180 anos na vizinhança. Aos poucos, os ecologistas estão concluindo
que esse novo estado da floresta, um verdadeiro rejuvenescimento,
é indispensável para a manutenção de uma floresta diversa, rica e
sadia”[9].
Parece que os casamentos são como as florestas e o divórcio, como uma
espécie de queimada natural, vem cumprindo o seu papel de contribuir, ora para
a reconstrução, ora para o renascimento fortalecido dos vínculos conjugais.
[1] O Direito
Canônico jamais admitiu o divórcio vincular, pois a ideia de indissolubilidade
do casamento tem origem bíblica. Nos evangelhos, consta a mensagem de que “o
homem não pode separar aqueles que Deus uniu” (Cf. GILISSEN, John. Introdução
Histórica ao Direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003, p.
569).
[2] CÂMARA, Arruda. A batalha do divórcio. São Paulo: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1952.
[3] FRANCA S. J., Leonel. O divórcio. Rio de Janeiro: AGIR, 1955.
[4] No Código Civil de 1916 foi revogado todo o Título IV, do Livro I, do Código Civil de 1916, que tratava da dissolução da sociedade conjugal (artigos 315 a 324) e da proteção da pessoa dos filhos (artigos 325 a 328), visto que essa matéria agora seria tratada exclusivamente pela Lei do Divórcio.
[5] Nesse sistema dual, as possibilidades de dissolução do casamento comportavam a divisão entre causas dissolutivas e causas terminativas. As causas terminativas atacavam apenas a sociedade conjugal, pondo fim aos deveres recíprocos e ao regime de bens, enquanto as causas dissolutivas atacavam não apenas os deveres e o regime de bens, mas a própria relação jurídica que vinculava os cônjuges, permitindo, assim, as novas núpcias. As primeiras terminavam, mas não dissolviam o casamento (Cf. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 356).
[6] REINACH, Fernando. O Estado de S. Paulo, Brasil 14 de out de 2017 A11.
[7] Idem.
[8] A Declaração Universal dos Direitos Humanos também estabelece que os homens e mulheres gozam de iguais direitos em relação à dissolução do casamento (artigo XVI). Não pode, pois, o Estado obstar, em situação alguma, o exercício desse direito. O CC/2002, fiel a essa diretriz, permite a dissolução do casamento sempre que a comunhão de vida deixar de existir, seja qual for o motivo (artigo 1.573, parágrafo único) e a partir da EC 66/2010 foram abolidos do sistema quaisquer requisitos legais para o divórcio.
[9] Texto cit.
[2] CÂMARA, Arruda. A batalha do divórcio. São Paulo: Oficinas Gráficas do Jornal do Brasil, 1952.
[3] FRANCA S. J., Leonel. O divórcio. Rio de Janeiro: AGIR, 1955.
[4] No Código Civil de 1916 foi revogado todo o Título IV, do Livro I, do Código Civil de 1916, que tratava da dissolução da sociedade conjugal (artigos 315 a 324) e da proteção da pessoa dos filhos (artigos 325 a 328), visto que essa matéria agora seria tratada exclusivamente pela Lei do Divórcio.
[5] Nesse sistema dual, as possibilidades de dissolução do casamento comportavam a divisão entre causas dissolutivas e causas terminativas. As causas terminativas atacavam apenas a sociedade conjugal, pondo fim aos deveres recíprocos e ao regime de bens, enquanto as causas dissolutivas atacavam não apenas os deveres e o regime de bens, mas a própria relação jurídica que vinculava os cônjuges, permitindo, assim, as novas núpcias. As primeiras terminavam, mas não dissolviam o casamento (Cf. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das Famílias. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 356).
[6] REINACH, Fernando. O Estado de S. Paulo, Brasil 14 de out de 2017 A11.
[7] Idem.
[8] A Declaração Universal dos Direitos Humanos também estabelece que os homens e mulheres gozam de iguais direitos em relação à dissolução do casamento (artigo XVI). Não pode, pois, o Estado obstar, em situação alguma, o exercício desse direito. O CC/2002, fiel a essa diretriz, permite a dissolução do casamento sempre que a comunhão de vida deixar de existir, seja qual for o motivo (artigo 1.573, parágrafo único) e a partir da EC 66/2010 foram abolidos do sistema quaisquer requisitos legais para o divórcio.
[9] Texto cit.
Mário Luis Delgado é advogado,
professor da Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (Fadisp), presidente da
Comissão de Assuntos Legislativos do Instituto Brasileiro de Direito de Família
(IBDFam), diretor de Assuntos Legislativos do Instituto dos Advogados de São
Paulo (Iasp) e membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC) e do
Instituto de Direito Comparado Luso-Brasileiro (IDCLB). Tem doutorado em
Direito Civil pela Universidade de São Paulo e mestrado em Direito Civil
Comparado pela PUC-SP.
Revista Consultor Jurídico,
22 de outubro de 2017, 8h00
https://www.conjur.com.br/2017-out-22/processo-familiar-40-anos-divorcio-brasil-historia-casamentos-florestas
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