OPINIÃO - Precatórios não podem ser cancelados por falta de documentos
30 de julho de 2017, 9h00
O precatório consiste numa requisição administrativa expedida pelo Poder
Judiciário para pagamento de débitos devidos pelas Fazendas Públicas Federal,
Estadual, Distrital e Municipal, incluídas suas autarquias e fundações, em
virtude de sentença judicial, nos termos do artigo 100 da Constituição Federal.
Os débitos pagos mediante a expedição de precatório são aqueles que
ultrapassarem o limite estabelecido por lei específica do ente federado para o
pagamento de obrigações de pequeno valor, o qual não pode ser inferior ao teto
fixado para o Regime Geral da Previdência Social (RGPS), nos termos dos §§ 3º e
4º do artigo 100 da Constituição Federal.
Em 2017, o teto do RGPS foi atualizado em R$ 5.531,31 pela Portaria
08/2017 do Ministério de Estado da Fazenda. Para tanto, o Juízo da Execução
deve expedir, ao final do processo de execução, ofício requisitório ao
Presidente do Tribunal com as informações e cópias necessárias, a fim de que
seja gerado um processo administrativo (precatório) para que o pagamento seja realizado
em ordem cronológica de apresentação deste ofício e à conta dos créditos
disponibilizados pelo ente devedor.
Para a regular formação do precatório, a Resolução 115/2010 do Conselho
Nacional de Justiça estabelece, em seu artigo 5º, as informações necessárias
que devem ser prestadas pelo Juízo da Execução, conforme a seguir transcrito:
·
I – número do processo de execução e data do ajuizamento do processo de
conhecimento;
·
II – natureza da obrigação (assunto) a que se refere o pagamento e, em
se tratando de indenização por desapropriação de imóvel residencial, indicação
de seu enquadramento ou não no art. 78, § 3º, do ADCT;
·
III – nomes das partes, nome e número de seu procurador no CPF ou no
CNPJ;
·
IV – nomes e números dos beneficiários no CPF ou no CNPJ, inclusive
quando se tratar de advogados, peritos, incapazes, espólios, massas falidas,
menores e outros;
·
V – natureza do crédito (comum ou alimentar);
·
VI – o valor individualizado por beneficiário, contendo o valor e a
natureza dos débitos compensados, bem como o valor remanescente a ser pago, se
houver, e o valor total da requisição;
·
VII – data-base considerada para efeito de atualização monetária dos
valores;
·
VIII – data do trânsito em julgado da sentença ou acórdão no processo de
conhecimento;
·
IX – data do trânsito em julgado dos embargos à execução ou impugnação,
se houver, ou data do decurso de prazo para sua oposição;
·
X – data em que se tornou definitiva a decisão que determinou a
compensação dos débitos apresentados pela Fazenda Pública na forma dos art.
100, §§ 9º e 10, da Constituição Federal;
·
XI – em se tratando de requisição de pagamento parcial, complementar,
suplementar ou correspondente a parcela da condenação comprometida com
honorários de advogado por força de ajuste contratual, o valor total, por
beneficiário, do crédito executado;
·
XII – em se tratando de precatório de natureza alimentícia, indicação da
data de nascimento do beneficiário e se portador de doença grave, na forma da
lei.
·
XIII – data de intimação da entidade de Direito Público devedora para
fins do disposto no art. 100, §§ 9º e 10, da Constituição Federal, ou, nos
casos em que tal intimação for feita no âmbito do Tribunal, data da decisão
judicial que dispensou a intimação em 1ª instância.
·
XIV – em relação a processos de competência da Justiça Federal, o órgão
a que estiver vinculado o servidor público civil ou militar da administração
direta federal, quando se tratar de ação de natureza salarial, com a indicação
da condição de ativo, inativo ou pensionista, e;
·
XV – em relação a processos de competência da Justiça Federal e do
Trabalho, o valor das contribuições previdenciárias, quando couber.
A Resolução 115/2010 entrou em vigor em 29 de junho de 2010, momento a
partir do qual o CNJ formalizou a lista dos documentos necessários à instrução
do precatório.
Nesse diapasão, em virtude da inexistência de regulamentação anterior
sobre a documentação necessária à formalização do precatório, os documentos
constantes do art. 5º da Resolução 115/2010 poderiam ser exigidos no curso do
andamento dos precatórios distribuídos em data anterior a 29 de junho de 2010
sem maiores transtornos.
Quanto aos precatórios distribuídos em data posterior à entrada em vigor
da referida Resolução, estes não deveriam sequer ter sido distribuídos, porém,
sendo realizada a distribuição com a irregularidade na documentação, há que se
analisar a viabilidade da manutenção ou cancelamento do precatório.
O precatório é gerado por ofício expedido pelo Juízo de primeiro grau, o
qual tem o dever de enviar ao Tribunal os documentos necessários exigidos pela
Resolução 115/2010 do CNJ, havendo corresponsabilidade do Juiz Gestor do
Departamento de Precatórios, que tem o dever de conferir a documentação antes
de autorizar a distribuição do processo administrativo de precatório.
Logo, não há como transferir para os credores o ônus do não cumprimento
de um dever por parte do Poder Judiciário, caso em que não seria viável o
cancelamento dos precatórios irregulares nesse, especialmente no que tange
àqueles que já foram alvo do pagamento de antecipações.
Tais processos sustentam, por certo tempo, uma situação irregular por
ausência de alguns dos documentos elencados no dispositivo supramencionado,
garantindo ao credor a consolidação daquela situação pelo decurso do tempo,
inclusive com o pagamento de antecipações decorrentes de preferência por idade
ou doença grave.
Em tais casos é pertinente a aplicação da teoria do fato consumado para
evitar prejuízo aos credores quanto à ordem cronológica e maiores transtornos
quanto aos valores já pagos em regime de antecipação em razão de preferência
por idade ou doença grave, além de evitar uma grande quantidade de mandados de
segurança propostos pelos credores.
A “teoria do fato consumado”, anteriormente, era uma construção
jurisprudencial que justificava a manutenção de uma situação de fato
constituída pelo deferimento de uma tutela de urgência, ainda que o provimento
final pudesse ser desfavorável, por ocasião do extenso lapso temporal entre o
deferimento liminar e a decisão final, que ensejou a consolidação dessa
situação de fato de tal forma que sua desconstituição geraria prejuízos muito
maiores que sua manutenção.
No dizer do Superior Tribunal Justiça (Resp. 441064/RS), a teoria do
fato consumado seria “uma situação ilegal consolidada no tempo, em decorrência
da concessão de liminar”.
Atualmente, o STJ deu uma nova roupagem à referida teoria, abandonando
esse entendimento, a partir do informativo 598/2017, no qual restou consignado
que, se houver contestação inicial das partes envolvidas no sentido de reputar
o ato irregular, inclusive através das vias adequadas, e, em razão do extenso lapso
temporal no procedimento para a apuração da legalidade do ato, sejam gerados
efeitos concretos, uma vez confirmada a ilegalidade, deve o ato administrativo
ser desfeito, preservando-se, tão somente, o que não puder ser restabelecido ao
status quo ante pela consolidação fática irreversível.
De acordo com o informativo 598/2017 do Superior Tribunal de Justiça,
extrai-se ainda a seguinte orientação:
"Em uma primeira linha, a teoria do fato consumado tem sido
aplicada, no âmbito judicial, para as hipóteses em que, pela própria lei da
natureza, não haveria como desfazer os acontecimentos decorrentes do ato
viciado. Também tem sido reconhecida a incidência da teoria do fato consumado
nas hipóteses em que a Administração permite, por vários anos, a permanência de
situação contrária à legalidade estrita, atribuindo ares de legalidade a
determinada circunstância, e, assim, fazendo crer que as pessoas agem de
boa-fé, conforme o direito. Nessa perspectiva, a teoria do fato consumado
guarda íntima relação com a convalidação dos atos administrativos, atualmente
regulada pelo artigo 54 da Lei 9.784/99. Quanto aos comportamentos das partes
ao longo do tempo, faz-se necessário, para que se tenha por aplicável a teoria
do fato consumado, distinguir duas situações que podem ocorrer quando se
pratica um ato equivocado. A primeira situação corresponde à hipótese em que um
ato contrário à lei é praticado sem dolo e sem contestação, tendo vigência por
anos a fio, e assim atribuindo à situação fática ares de legalidade, atraindo para
si o valor da segurança jurídica. Há, nesses casos, de ser preservada a
estabilidade das relações geradas pelo ato inválido, cuja regularidade
manteve-se inconteste por anos, fazendo convalescer o vício que originalmente
inquinava sua validade. Protege-se, com isso, a boa-fé e o princípio da
confiança legítima do administrado, a ela associado."
Isso quer dizer que o STJ tem entendido que, quando a Administração
Pública permite a permanência de uma situação contrária à legalidade estrita
por um longo período de tempo, sem oposição, fazendo com as pessoas creiam que
aquela situação era de "legalidade" em virtude da boa-fé que se
espera, conforme o direito, a fim de preservar a segurança jurídica, a boa-fé e
a confiança legítima do administrado, há que se aplicar a “teoria do fato
consumado”, convalidando-se o ato administrativo.
É exatamente nesse contexto que se enquadra o precatório que foi gerado
pela Administração Pública sem observância dos requisitos formais elencados
pela Resolução 115/2010 do CNJ, haja vista que, como foi o próprio Poder
Judiciário que expediu a requisição e gerou o precatório sem atender às
formalidades exigidas, fazendo com que o precatório tivesse uma posição em
ordem cronológica estabelecida, criou-se, no credor, o que o STJ denomina de
confiança legítima do administrado, o qual, crendo na boa-fé da Administração
Pública, permaneceu anos a fio sendo credor de um precatório irregular sem
qualquer dolo ou contestação por parte do Poder Público.
In casu, conforme dito
pelo STJ no informativo acima citado, "a teoria do fato consumado guarda
íntima relação com a convalidação dos atos administrativos, atualmente regulada
pelo artigo 54 da Lei 9.784/99", além do artigo 55 da mesma norma, abaixo
transcritos:
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de
que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos,
contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á
da percepção do primeiro pagamento.
§ 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de
autoridade administrativa que importe impugnação à validade do ato.
Art. 55. Em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao
interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos
sanáveis poderão ser convalidados pela própria Administração.
Embora tal documento não conste nos autos do precatório, ele deve
existir fisicamente como prova da realização do ato jurídico, de forma a ser
possibilitada sua juntada em momento posterior à distribuição do precatório,
sendo necessário o cancelamento do precatório somente em caso de inexistência
do documento nos cadastros internos deste Tribunal pelo fato de a execução
ainda não ter sido concluída de forma regular, documento este cuja ausência
venha a descaracterizar o próprio direito do credor, pois, se o documento não
mais existir por deterioração, deve a Administração Pública promover sua
restauração de ofício.
É importante salientar que o credor possui o direito à percepção do
crédito decorrente de precatório por sentença condenatória transitada em
julgado desde a época da distribuição do correspondente processo administrativo
de precatório, porém, a irregularidade na documentação foi gerada por motivos
alheios a sua vontade, ônus este que não deve ser suportado pelo credor, não
podendo o Poder Judiciário transferir ao credor um ônus decorrente de equívoco
em sua atuação.
Além da teoria acima referida, há que se observar o princípio da
razoabilidade, já que o cancelamento do precatório após anos de tramitação e
com posição demarcada na lista de cronologia, fulminaria o direito do credor,
podendo até mesmo gerar o transtorno de devolução de valores aos cofres
públicos.
A lei 9784/99, inclusive, elenca, em seu artigo 2º, o princípio da
razoabilidade como vetor para a atuação da Administração Pública. Confira-se:
Art. 2º. A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos
princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade,
proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica,
interesse público e eficiência.
É importante ter em mente que ato razoável é aquele que é praticado com
racionalidade e aceitável pelos parâmetros do senso comum, leia-se aquele ato
em sintonia com o entendimento de pessoas prudentes, equilibradas e sensatas e
que atenda à finalidade precípua que a lei estabelece (MELLO, 2002, p.91).
Ainda que existam valorações distintas sobre uma mesma situação, o que é
razoável deve situar-se dentro dos limites aceitáveis, daí porque o
cancelamento do precatório não se mostra razoável. Poderiam ainda ser invocados
os princípios da proporcionalidade, dignidade da pessoa humana, razoável
duração do processo, eficiência e segurança jurídica.
Tal interpretação pode ser feita, inclusive, em caso de ausência do
trânsito em julgado dos embargos à execução e caso esse trânsito ocorra antes
do momento do pagamento de antecipação ou em ordem cronológica sem alteração da
sentença ou acórdão proferidos nos embargos à execução, pois terá sido
implementada a situação de regularidade do precatório antes do seu pagamento,
relembrando que o equívoco da determinação de expedição do precatório sem o
trânsito em julgado dos embargos à execução e o equívoco da distribuição do
precatório foram do Poder Judiciário.
Porém, caso o trânsito em julgado dos embargos à execução não ocorra no
momento do pagamento da antecipação ou da ordem cronológica, ou, ocorrendo
anteriormente, haja alteração do valor constante do ofício que gerou o
precatório, deve-se promover o cancelamento do precatório diante da pendência
de irregularidade que obsta o pagamento, observando-se, em qualquer caso em que
seja realizado, na prática, o cancelamento do precatório por vício em sua
formação decorrente de equívoco do Poder Judiciário, que, se ficar configurado
prejuízo decorrente deste cancelamento, deve ser ressalvado ao credor
prejudicado o direito de exigir perdas e danos.
Assim, inviável o cancelamento do precatório por ausência da
documentação prevista no art. 5º da Resolução 115/2010 pelos motivos acima
expostos, podendo haver requisição de tais documentos faltantes aos Juízos de
primeiro grau à medida em que identificada a irregularidade no decorrer do
manuseio dos processos, devendo o Juízo de primeiro grau, inclusive, encaminhar
ofício, justificando a inexistência do documento se for o caso e promover o
respectivo suprimento.
Referências
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14ª
edição. São Paulo: Editora Malheiros, 2002.
http://www.conjur.com.br/2017-jul-30/raquel-santana-precatorios-nao-podem-cancelados-falta-documento
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