“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

DIREITO CIVIL ATUAL Qual é o prazo prescricional da responsabilidade contratual? (parte 3)



22 de maio de 2017, 8h00
Nas colunas anteriores, foi posto em discussão recente aresto do Superior Tribunal de Justiça[1] que concluiu ser trienal a prescrição da pretensão à responsabilidade contratual com argumentos de ordem literal, sistemática e axiológica. Na semana passada, analisou-se o fundamento literal empregado pela decisão, de modo a esclarecer que a expressão “reparação civil” constante do artigo 206, parágrafo 3º, inciso V, do Código Civil se refere em caráter primário à responsabilidade extracontratual. Cumpre agora abordar o argumento sistemático invocado pela Corte.

Trata-se de providência que se afigura de rigor, pois o dado literal é apenas o ponto de partida à devida inteligência da regra contida no artigo 206, parágrafo 3º, inciso V, do Código Civil e deve ser sucedido e complementado pelo método lógico-sistemático. Afinal, “a verdade inteira resulta do contexto, e não de uma parte truncada, quiçá defeituosa, mal redigida”[2], sendo vedado ao Direito – que é ordenamento, e não caos – não guardar uma lógica entre os seus comandos.
No direito dos contratos, a regra é a execução específica. Se houver mora, o credor poderá exigir que o devedor cumpra exatamente aquilo a que se obrigou mais as perdas e danos decorrentes da inobservância do tempo, lugar ou modo pactuados, conforme se infere da leitura dos arts. 389, 394 e 395 do Código Civil. Se houver inadimplemento definitivo, o credor poderá optar entre a execução pelo equivalente e, observados os pressupostos necessários, a resolução, além de poder exigir, em qualquer caso, o pagamento das perdas e danos, de acordo com o previsto no artigo 475 do Código Civil[3].
A coerência reclama que o credor esteja sujeito ao mesmo prazo para exercer as três pretensões que a lei põe à sua disposição para reagir diante do inadimplemento[4].
Como já foi observado, carece de sentido afirmar que o credor tem um prazo para exigir o cumprimento e outro para o pagamento da indenização[5]. Se a pretensão ao adimplemento ainda não foi encoberta pela eficácia da prescrição e, portanto, o contratante pode exigir a observância ao avençado, a lógica reclama que também lhe seja possível, no mesmo lapso temporal, responsabilizar o devedor pelos danos decorrentes do descumprimento. Pode-se afirmar o mesmo a propósito da execução pelo equivalente e da resolução. Se o credor ainda pode reclamar a prestação substitutiva ou a extinção da relação contratual, deve-se igualmente lhe reconhecer a pretensão indenizatória decorrente do inadimplemento definitivo.
Nesse cenário normativo, a entender-se incidente a regra geral contida no artigo 205 do Código Civil, e não a prescrição trienal, resta preservada a integridade do ordenamento. Diante da mora, o credor tem, como regra geral, o prazo de dez anos para exigir a execução específica. Diante do inadimplemento definitivo, a regra geral igualmente confere ao credor dez anos para exigir a execução pelo equivalente ou, observados os pressupostos legais, a resolução. Seja em caso de mora, seja em caso de inadimplemento definitivo, o credor, sempre com fundamento na regra geral, tem, em adição, os mesmos dez anos para exigir o pagamento de indenização que lhe for devida.
Segue-se daí que a orientação defendida pelo recente o julgado do Superior Tribunal de Justiça põe em xeque a racionalidade do Código nesta matéria, pois, diante de um mesmo inadimplemento, leva à aplicação do prazo trienal para a indenização e do prazo decenal para os demais direitos que são reconhecidos ao credor também em face do inadimplemento do contrato.
A hipótese de mora é ilustrativa. Nesse caso, o credor teria dez anos para exigir o cumprimento da prestação, mas apenas três para exigir a indenização decorrente da inobservância do tempo, lugar ou modo pactuados por parte do devedor. Passados três anos, o devedor poderia, assim, obter o efeito equivalente à purgação da mora sem, todavia, ressarcir os prejuízos causados ao credor, o que contrastaria com a regra constante do artigo 401, inciso I, do Código Civil. O mesmo se verifica na hipótese de inadimplemento definitivo. O credor teria então dez anos para pleitear a execução pelo equivalente ou, se cabível, a resolução, mas apenas três para reclamar o pagamento das perdas e danos decorrentes do inadimplemento. O artigo 475 do Código Civil passaria, então, a ser aplicado pela metade.
A preservação da coerência do ordenamento jurídico exige que, como regra, o credor tenha à disposição o mesmo prazo para exercer os distintos direitos que possui diante do descumprimento, a saber, a execução específica, a execução pelo equivalente ou a resolução, somadas, em todas as hipóteses, às perdas e danos decorrentes do inadimplemento. O raciocínio em sentido diverso priva de lógica e de coerência o ordenamento e, portanto, não encontra abrigo entre nós.
Na semana que vem, em sequência à análise dos fundamentos suscitados pelo aresto, será analisado de maneira crítica o fundamento axiológico empregado pelo aresto do Superior Tribunal de Justiça para defender a aplicação da prescrição trienal da pretensão à responsabilidade contratual.
*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

[1] REsp 1.281.594/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. j. 22.11.2016.
[2] Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 106.
[3] Martins-Costa, Judith. O árbitro e o cálculo do montante da indenização, p. 5 (Texto ainda não publicado). No mesmo sentido, Zanetti, Cristiano de Sousa. A transformação da mora em inadimplemento absoluto. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, abril/2014, v. 942, p. 13-14; e Zanetti, Ana Carolina Devito Dearo. Contrato de distribuição. O inadimplemento recíproco. São Paulo: GEN-Atlas, 2015, p. 121 e ss.
[4] Martins-Costa, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Do inadimplemento das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II. p. 160-162; e Theodoro Jr., Humberto. Comentários ao novo Código Civil: dos atos jurídicos lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e decadência. Da prova. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. III, t. II. p. 310 e 332-334.
[5] Martins-Costa, Judith. Comentários ao Novo Código Civil. Do inadimplemento das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, v. V, t. II. p. 160-162; THEODORO JR., Humberto. Comentários ao novo Código Civil: dos atos jurídicos lícitos. Dos atos ilícitos. Da prescrição e decadência. Da prova. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v. III, t. II. p. 333; Maluf, Carlos Alberto Dabus. Código Civil comentado: artigos 189 a 232. Atlas: São Paulo, 2009, p. 111-112 e Carneiro, Athos Gusmão. Prescrição trienal e “reparação civil”. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, jul./set. 2010, v. 13, n. 49, p. 18-19.
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Judith Martins-Costa foi professora adjunta de Direito Civil da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É doutora e livre docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Presidente do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC) e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas (ABLJ).
Cristiano de Sousa Zanetti é professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Bacharel, mestre, doutor e livre-docente em Direito Civil pela Universidade de São Paulo. Mestre em Sistema Jurídico Romanístico, Unificação do Direito e Direito da Integração pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata. Foi vice-reitor executivo adjunto de Administração da Universidade de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 22 de maio de 2017, 8h00


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