TRIBUNA DA DEFENSORIA - Juiz pode, de ofício, deferir benefício da gratuidade de Justiça
7 de março de 2017, 11h52
O novo Código de Processo
Civil foi bem mais atencioso com a disciplina da gratuidade de Justiça,
especialmente quando incorporou as regras consolidadas na jurisprudência ao seu
texto. De acordo com o artigo 99, “o pedido de gratuidade de justiça
pode ser formulado na própria petição inicial, na contestação, na petição de
ingresso de terceiro no processo ou em recurso” [1].
O requerimento também pode ser
formulado em qualquer outra fase processual, pois é perfeitamente possível que
a parte, no momento da propositura da ação, do oferecimento da contestação ou
do ingresso como terceiro interessado, disponha de condições econômicas para
arcar com as despesas do processo e, posteriormente, sofra uma piora de sua
saúde financeira. Nesse caso, sendo o pedido superveniente à primeira
manifestação da parte, poderá ser formulado por petição simples, nos autos do
próprio processo, e não suspenderá seu curso (artigo 99, § 1º do CPC/2015)
[2].
Segundo determina o artigo 5º da
Lei 1.060/1950 (não revogado pelo artigo 1.072, III do CPC/2015),
após a formulação do pedido de gratuidade, o juiz “deverá julgá-lo de plano,
motivando ou não o deferimento dentro do prazo de setenta e duas horas”. Julgar
de plano significa decidir de imediato, sem que sejam determinadas diligências
para melhor instruir o pedido [3].
Com isso, pretende o legislador fazer valer a presunção legal de
hipossuficiência econômica constante do artigo 99, § 3º do CPC/2015,
estabelecendo expressamente que o direito à gratuidade de justiça deve ser
reconhecido incontinenti, sem a necessidade de qualquer dilação
probatória.
No entanto, paira no ar a seguinte indagação: Pode o juiz conceder, de
ofício, a gratuidade de justiça?
De acordo com a posição tradicional,
o reconhecimento do direito à gratuidade de justiça dependeria obrigatoriamente
de manifestação da parte interessada, que deveria alegar a insuficiência de
recursos para pagar as despesas processuais e os honorários advocatícios
(artigo 98 do CPC/2015). Com isso, seria vedado ao juiz ou tribunal
realizar o reconhecimento do direito à gratuidade de justiça ex officio,
tornando-se necessária a formulação de pedido expresso pela parte interessada [4]
ou por meio de seu advogado, quando detiver esse poder especial, previsto no
artigo 105 do novo CPC.
Nesse sentido, lecionam Fredie Didier Jr. e Rafael Alexandria de
Oliveira, em recente estudo realizado sobre o tema:
“A concessão da gratuidade de justiça depende de requerimento do
interessado; esse requerimento pode ser formulado no primeiro momento em que
ele aparece nos autos ou em momento posterior”. (Oliveira, Rafael Alexandria
de. Aspectos Procedimentais do Benefício da Justiça Gratuita, in Sousa,
José Augusto Garcia de (coord.). Coleção Repercussões do Novo CPC –
Defensoria Pública, Salvador: Juspodivm, 2015, pág. 65)
Da mesma forma, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar os
Embargos de Divergência 103.240/RS, entendeu ser inamissível o reconhecimento
do direito à justiça gratuita sem a manifestação da parte interessada:
Processual civil. Justiça gratuita. Concessão ex officio.
Impossibilidade. A concessão do benefício da assistência judiciária gratuita
pressupõe a manifestação da parte interessada de que não tem condições para
arcar com as despesas do processo, sendo vedado ao juiz conceder tal benefício ex
officio. Embargos acolhidos. (STJ – 3ª Seção – EREsp 103.240/RS – Relator
Min. Felix Fischer, decisão: 22-03-2000) [5]
No entanto, por constituir direito fundamental constitucionalmente
estabelecido, entendemos que o direito à gratuidade de justiça deve ser
reconhecido ainda que inexista requerimento do interessado. Afinal, quando
estabeleceu o dever estatal de prestar a assistência jurídica integral e
gratuita (artigo 5º, LXXIV) e de garantir o amplo acesso à justiça
(artigo 5º, XXXV), a Constituição Federal não condicionou tal dever
jurídico ao requerimento do necessitado. Em todo o texto constitucional não há
nenhuma norma expressa ou implícita nesse sentido.
Sendo assim, a exigência formal de alegação da insuficiência de recursos
não deve ser vista como uma condição prévia e inafastável ao reconhecimento do
direito à gratuidade — até porque, se ostentasse essa qualidade seria
inegavelmente inconstitucional. Na verdade, ao prever que a insuficiência de
recursos seria demonstrada por intermédio de simples alegação, pretendeu o
legislador facilitar o acesso das classes mais pobres à justiça, evitando que
exigências probatórias relativas à incapacidade econômica acabassem impedindo
ou dificultando a obtenção da tutela jurisdicional devida.
Desse modo, não se mostra necessária
a formulação de pedido expresso para que seja reconhecido o direito à gratuidade
de justiça; se as circunstâncias da causa ou os elementos probatórios trazidos
aos autos evidenciarem a incapacidade econômica da parte de arcar com o
pagamento das despesas processuais e honorários advocatícios, poderá o juiz
reconhecer de ofício o direito à gratuidade, dispensando o recolhimento
antecipado das custas lato sensu.
Se a hipossuficiência econômica resta evidenciada por outros meios,
mostra-se ilógica e desnecessária a exigência formal de alegação da
insuficiência de recursos para que seja consolidado o reconhecimento do direito
à gratuidade; seria como exigir o pedido de socorro daquele que se encontra
pendurado em um penhasco, para que somente então lhe fosse prestada a
competente ajuda.
Corroborando esse posicionamento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de
Justiça tem reiteradamente admitido o reconhecimento do direito à gratuidade de
justiça de ofício pelo juiz ou tribunal:
Processual civil. Benefício da justiça gratuita. Concessão de ofício.
Possibilidade. 1. A jurisprudência assente na sexta turma é no mesmo sentido
preconizado pelo acórdão atacado, vale dizer, não há julgamento “extra
petita” no deferimento “ex officio” do benefício da
justiça gratuita. (STJ – 6ª Turma – REsp 102.835/RS – Relator Min.
Fernando Gonçalves, decisão: 09-09-1997)
É dever do Estado prestar assistência judiciária integral e gratuita,
razão pela qual, nos termos da jurisprudência do STJ, permite-se a sua
concessão ex officio. (STJ – 6ª Turma – REsp 320.019/RS – Relator
Min. Fernando Gonçalves, decisão: 05-03-2002)
Constitucional. Processual civil. Assistência jurídica gratuita.
Garantia constitucional. Encargos da sucumbencia. Suspensão. Concessão de
ofício. A Constituição Federal assegura aos necessitados a assistência jurídica
integral, o que não afasta a obrigação pelos encargos da sucumbência, que deve
ser suspensa. Tratando-se de garantia constitucional de alta relevância para o
exercício dos demais direitos, impõe-se o seu reconhecimento, inclusive, de
ofício, que não configura julgamento ultra petita. (STJ – 6ª Turma
– REsp 103.240/RS – Relator Min. Vicente Leal, decisão: 22-04-1997)
Além disso, por se encontrar diretamente ligado ao interesse estatal em
arrecadar os valores necessários ao custeio fixo da administração da justiça, a
análise do direito à gratuidade de justiça constitui autêntica matéria de ordem
pública, podendo, por essa razão, ser conhecida a qualquer momento pelo
magistrado, independentemente de provocação.
Essa afirmação encontra respaldo,
inclusive, no próprio artigo 8º da Lei 1.060/1950 (não revogado pelo
artigo 1.072, III do CPC/2015), que permite a revogação ou cassação da
gratuidade ex officio pelo juiz ou tribunal [6].
Assim como há o interesse público em impedir a indevida utilização gratuita dos
serviços judiciais, também existe o interesse público em garantir o acesso
daqueles que necessitem à justiça [7].
Por fim, como observa o professor
José Augusto Garcia de Sousa, a possibilidade de concessão oficiosa da
gratuidade “se vê estimulada pelo artigo 8º do CPC/2015, segundo o qual o
juiz deve atender, na aplicação do ordenamento jurídico, aos fins sociais e às
exigências do bem comum” [8].
1 Segundo previa o artigo 4º
da Lei 1.060/1950, o pedido de gratuidade deveria ser formulado “na
própria petição inicial”. Como observa Augusto Tavares Rosa Marcacini, o
dispositivo apresentava certa impropriedade, pois “ao dizer ‘petição inicial’
esqueceu-se o legislador que o réu, por óbvio, pode também requerer o
benefício. O que se pode perceber, com isso, é que não houve grande apuro
técnico ao elaborar-se a regra do artigo 4º”. (MARCACINI, Augusto Tavares
Rosa. Assistência Jurídica, Assistência Judiciária e Justiça Gratuita,
Rio de Janeiro: Forense, 1996, pág. 98)
2 Pela expressa redação do
artigo 6º da Lei 1.060/1950, o pedido de gratuidade formulado no
curso do processo deveria ser “autuado em apartado, apensando-se os respectivos
autos aos da causa principal”. No entanto, diante da presunção de necessidade
gerada pela afirmação da hipossuficiência (Lei 7.510/1986), não havia qualquer
razão que justificasse a adoção desse procedimento; na verdade, essa medida
servia apenas para atrasar e dificultar o deslinde da causa principal,
burocratizando demasiadamente a análise do direito à justiça gratuita. Por essa
razão, em virtude da defasagem do dispositivo, passou o Novo Código de Processo
Civil a determinar que o pedido fosse formulado por petição simples, nos autos
do próprio processo, sem suspender o seu curso.
3 VIDIGAL, Maurício. Lei
de Assistência Judiciária Interpretada, São Paulo: Editora Juarez de
Oliveira, 2000, pág. 42.
4 Seguindo essa linha de
raciocínio, o professor José Domingues Filho lecionava, durante a vigência do
Código de Processo Civil de 1973: “Em obediência ao disposto no caput do
artigo 4º da Lei 1.060/1950, é vedado ao magistrado conceder de ofício os
benefícios da assistência judiciária gratuita. É necessário que a parte o
requeira.” (DOMINGUES FILHO, José. Das Despesas, Honorários
Advocatícios e Justiça Gratuita no Processo Civil. Campo Grande: Editora
Contemplar, 2009, pág. 393)
5 No mesmo sentido: STJ – 4ª
Turma – AgRg no REsp 1.089.264/PR – Relator Min. Luis Felipe Salomão,
decisão: 14-04-2009 / STJ – 5ª Turma – AgRg no REsp 1.095.857/RS – Relator
Min. Napoleão Nunes Maia Filho, decisão: 16-12-2010.
6 Súmula 43 do TJ-RJ: “Cabe a
revogação, de ofício e a qualquer tempo, do benefício da gratuidade de justiça,
desde que fundamentada.”
8 SOUSA, José Augusto Garcia de. Comentários
ao Novo Código de Processo Civil, coordenação Antonio do Passo Cabral,
Ronaldo Cramer, Rio de Janeiro: Forense, 2016, pág. 168.
http://www.conjur.com.br/2017-mar-07/tribuna-defensoria-juiz-oficio-deferir-beneficio-gratuidade-justica
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