“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

Audiências de custódia liberaram 65 mil presos em todo o país em 2016

OLHO NO OLHO
24 de fevereiro de 2017, 13h47
Dos mais de 140 mil presos em flagrante que tiveram a oportunidade de serem ouvidos por um juiz no ano passado, nas audiências de custódia, 65 mil (46%) conseguiram responder ao processo em liberdade, com fiança, relaxamento ou alguma medida cautelar. Os 75 mil restantes correspondem a um terço dos 221 mil presos provisórios do país.
É o que aponta um levantamento inédito da revista eletrônica Consultor Jurídico com os 27 tribunais de Justiça do Brasil — nem o Conselho Nacional da Justiça, que estimula esses encontros presenciais, tem dados consolidados entre janeiro e dezembro de 2016. Em 2015, o número oficial indicou 15 mil soltos em 2015. Das solturas no ano passado, pelo menos 6.871 (10,5%) foram mediante fiança, e 6.659 das pessoas liberadas (10%) tiveram alguma assistência social. Oficialmente, 3.726 (2,5%) de todos os detidos reclamaram de violência policial.


Algemados, dois presos participam de audiência de custódia no Distrito Federal, em 2015.
A experiência completa dois anos nesta sexta-feira (24/2). Bahia e Maranhão já tinham projetos semelhantes antes de fevereiro de 2015, mas foi o Judiciário paulista que implantou o modelo formatado pelo CNJ: prazo de 24 horas para ouvir o preso, na presença de um promotor e defensor público ou advogado, sem entrar no mérito do motivo da prisão e com registro de relatos de eventuais maus-tratos praticados por policiais.
A estrutura varia de acordo com o tribunal ou até a região. Alguns locais têm centros e núcleos específicos, enquanto em outros juízes plantonistas e criminais atendem à demanda em esquema de rodízio. Em Porto Alegre, juízes vão até unidades prisionais para ouvir quem não passou por uma filtragem prévia, na análise tradicional por papel.
Como ainda está na Câmara dos Deputados um projeto de lei para regulamentar a prática, é o CNJ quem dita as regras gerais. Isso não quer dizer que tudo é seguido à risca: poucos tribunais de Justiça já cumpriram a ordem de levar as audiências de custódia pelo interior e nem todos conseguem seguir o limite de 24 horas. Maranhão adota prazo mais elástico de 48 horas, e problemas internos e até externos dificultam parte dos trabalhos pelo país.
Problemas locais
No sertão da Paraíba, onde há comarcas sem juiz titular, presos precisam aguardar o dia em que chega ao fórum algum juiz de outro lugar, segundo o juiz Carlos Neves da Franca Neto, que coordenou as audiências de custódia no estado até janeiro e hoje integra o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário no estado.
Levantamento do CNJ até janeiro de 2017.
Wagner Ulisses/CNJ
O Tribunal de Justiça do Amazonas também reconhece “carência de juízes e de servidores no interior”, num estado com “dimensões continentais e dificuldades logísticas diversas”.
Em alguns municípios do Rio Grande do Sul, uma parcela das audiências é feita sem nenhum defensor ao lado do suspeito, na falta de unidades da Defensoria Pública local. “A orientação é sempre realizar a audiência, intimando a defesa, mas mesmo com ou sem ela, porque se trata de ato judicial, incumbência do magistrado”, diz o juiz Vanderlei Deolindo, que atua como corregedor na área criminal do estado.
O TJ do Rio Grande do Norte também confirmou registro de audiências sem defensores ou representantes do Ministério Público, embora afirme que isso ocorre “raramente”. Em São Desidério, no extremo oeste da Bahia, um juiz permitiu a participação de um defensor público por videoconferência, direto da capital, a 880 quilômetros de distância.
Em Goiás, tornozeleiras eletrônicas deixaram de ser oferecidas pelo governo estadual em outubro de 2016.
Reprodução
Os tribunais de Alagoas, Mato Grosso do Sul e Pernambuco afirmam que, em raras ocasiões, a videoconferência foi a saída para ouvir alguns presos — embora o CNJ recomende que eles sempre devem estar frente a frente ao juiz.
Outro caso peculiar ocorreu no município de Xapuri (AC), onde um homem preso em flagrante sob suspeita de roubar o celular de um primo foi condenado a três dias, depois a 5 anos e 4 meses de prisão. A decisão, que já transitou em julgado, foi proferida na mesma data da audiência de custódia, do oferecimento da denúncia e da oitiva de testemunhas.
A baixa oferta de tornozeleiras eletrônicas para monitorar suspeitos soltos é mais um desafio. Em Goiás, a Secretaria de Segurança Pública e Administração Penitenciária deixou de fornecer esses equipamentos em outubro de 2016.
O TJ-SP, que lançou o projeto-piloto propagandeando respeito ao direito de defesa, proibiu as audiências no recesso de final de ano, entre os dias 20 de dezembro de 2016 e 6 de janeiro de 2017.
Estatísticas e violência policial
O registro interno de informações também nem sempre segue o que prega o Conselho Nacional de Justiça. A Resolução 213/2015 determina que as cortes sistematizem dados, para “viabilizar o controle das informações produzidas”, e produzam estatísticas, como o número de “denúncias relativas a tortura e maus-tratos”.
Dos 27 TJs, só 16 forneceram informações sobre relatos de violência no ato da prisão: o maior número foi em Pernambuco (703), enquanto Amapá e Mato Grosso do Sul declararam que não houve nenhum registro durante todo o ano. Poucas cortes têm o ranking dos crimes mais praticados.
Dentre os tribunais que apontam taxa de reincidência, o de Roraima calcula que voltaram a ser flagrados 87 dos 675 presos (13%). Já a corte goiana informa que 234 dos 4.365 presos ouvidos em 2016 tiveram um segundo encontro com o juiz; 28 foram apresentados pela terceira vez; 15 retornaram pela quarta vez e 1 foi levado pela quinta vez. No geral, o número representa 6,36% de quem passou pela audiência.
Índices de soltura
As audiências de custódia chegaram a ser apontadas pelo ex-ministro da Justiça Alexandre de Moraes (que está prestes a ir para o Supremo Tribunal Federal) como um dos caminhos para “retirar das penitenciárias quem não precisa estar”, após rebeliões em unidades prisionais do país no início deste ano.
Já o corregedor-geral da Justiça de São Paulo, Manoel Pereira Calças, entende que a medida não foi criada para soltar mais gente. “É para verificar se houve abuso de autoridade, violência e tortura. Aprecia-se a legalidade da prisão. Custodiar é guardar, defender, evitar que o preso seja vítima de uma violência da Polícia Civil ou da Polícia Militar”, afirmou em entrevista ao Anuário da Justiça 2017, editado pela ConJur — com lançamento no dia 8 de março.
“Audiência de custódia não serve para o juiz melhorar índices. Serve para os juízes prenderem melhor, quando for necessário”, afirma o juiz corregedor Vanderlei Deolindo, do Rio Grande do Sul.
O ministro Ricardo Lewandowski, um dos idealizadores do padrão desenvolvido pelo CNJ, nega que a soltura de presos possa aumentar a criminalidade. No ano passado, durante debate na sede da Associação dos Advogados de São Paulo, ele disse que liberar detidos que não oferecem risco à sociedade garante direitos humanos e beneficia a própria população, reservando vagas no sistema prisional para quem possa causar prejuízos, de fato. 

O defensor público-geral de São Paulo, Davi Dapiné Filho, avalia que um dos grandes avanços foi fazer juízes trocarem a comunicação em papel do flagrante pelo encontro com o preso. “Muitas vezes, acusados de tráfico de drogas chegam maltrapilhos, demonstrando que são usuários e, se venderam alguma quantidade, foi para custear o próprio vício”, declarou à ConJur na abertura do ano judiciário, em 1º de fevereiro.
Ministro Ricardo Lewandowski (segundo, da esquerda para a direita) visitou estados para estimular a prática, quando presidiu CNJ; na foto, ele participa de audiência no Maranhão.
Ribamar Pinheiro/TJ-MA
Respaldo do STF
Quando as audiências de custódia tiveram início, em 2015, delegados de polícia afirmaram ao Supremo (ADI 5.240) que o TJ-SP não poderia ter usado uma norma administrativa para legislar sobre Direito Processual e determinar como autoridades de outro poder (a polícia, ligada ao Executivo) deveriam agir.
Em agosto daquele ano, porém, o STF decidiu que o provimento apenas disciplinou direitos fundamentais do preso já citados no Código de Processo Penal e seguiu a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, que entrou no ordenamento jurídico brasileiro em 1992. Em seu artigo 7º, inciso 5º, o documento estabelece que “toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”.
Um mês depois, ao julgar ação reconhecendo o “estado de coisas inconstitucional” do sistema carcerário, o STF determinou que “todos os juízes e tribunais” adotassem audiências de custódia em 90 dias, com apresentação do preso em 24 horas (ADPF 347). A Associação Nacional dos Defensores Públicos chegou a reclamar, no ano passado, do descumprimento dessa ordem (Rcl 23.872), porém o ministro Dias Toffoli entendeu que os argumentos não foram comprovados.
Além dos TJs, os cinco tribunais regionais federais também já regularam a iniciativa internamente.
* Texto atualizado às 14h40 do dia 24/2/2017 para acréscimo de informação.
Felipe Luchete é repórter da revista Consultor Jurídico.
Revista Consultor Jurídico, 24 de fevereiro de 2017, 13h47

http://www.conjur.com.br/2017-fev-24/audiencias-custodia-liberaram-65-mil-presos-pais-2016

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