DIREITO CIVIL ATUAL - O direito de laje não é um novo direito real, mas um direito de superfície
2 de janeiro de 2017, 10h18
Nos estertores do ano de 2016, foi publicada a Medida
Provisória 759, que trata sobre “regularização fundiária rural e urbana,
sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e
sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, institui
mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de
imóveis da União, e dá outras providências”.
O que mais salta aos olhos na MP é a
previsão do chamado direito de laje, por ela inserido como direito real no
artigo 1225 do Código Civil brasileiro[1].
A medida provisória ainda acrescentou ao Código Civil o artigo 1510-A,
que dá os contornos do dito direito real de laje:
Art. 1.510-A. O direito real de laje consiste na possibilidade de
coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas
situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a
superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta
daquela originalmente construída sobre o solo (...)[2].
O direito de laje não constitui um direito real novo, mas uma modalidade
de direito de superfície que, desde 2001, já tem previsão expressa na
legislação brasileira, a superfície por sobrelevação.
O que caracteriza o direito de superfície e distingue o seu tipo dos
demais direitos reais é a possibilidade de constituir um direito tendo por
objeto construção ou plantação, separadamente do direito de propriedade sobre o
solo.
Em sentido mais técnico, há superfície quando se suspende os efeitos da
acessão sobre uma construção ou plantação a ser realizada ou já existente. O
implante que, por força da acessão, seria incorporado ao solo, passa a ser
objeto de um direito real autônomo, o direito real de superfície.
Vê-se que, a partir dessa definição de direito de superfície, sequer
seria necessário prever expressamente a possibilidade de sua constituição para
a construção no espaço aéreo ou para o destacamento de pavimentos superiores já
construídos. Da mesma forma, é desnecessária a menção expressa à possibilidade
de superfície constituída sobre construções no subsolo. Se é possível construir
no espaço aéreo ou no subsolo e essas construções sofrem, de ordinário, os
efeitos da acessão, pode-se tê-las como objeto do direito real de superfície.
Do próprio tipo da superfície deriva a possibilidade de sobrelevação,
portanto.
O Estatuto da Cidade (Lei 10.257/01), no entanto, houve por bem tratar
da sobrelevação expressamente e assim deixou indiscutível a sua viabilidade:
Art. 21. O
proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu
terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública
registrada no cartório de registro de imóveis.
§ 1º O direito
de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo
relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato respectivo, atendida a
legislação urbanística.
Na doutrina, vários autores tem se
ocupado do tema (vide, entre outros, MAZZEI, Rodrigo. Direito de superfície.
Salvador: Juspodium, 2013; VIEGAS DE LIMA, Frederico Henrique. O
direito de superfície como instrumento de planificação urbana. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005; PERCÍLIO, Renata. Negócio jurídico de
sobrelevação em direito de superfície. Dissertação de mestrado em
andamento, orientador prof. dr. Roberto Paulino, UFPE).
Além disso, o Enunciado 568, da VI
Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, concorda com a
possibilidade de constituição de superfície por sobrelevação no Direito brasileiro[3].
Trata-se, portanto, de uma figura já abarcada pelo tipo do direito de
superfície e já utilizada.
Sequer a terminologia “direito de
laje” pode-se dizer que tenha sido criada pela medida provisória. Já há alguns
anos que se fala em direito de laje como uma expressão popular para a
construção de novos pavimentos sem formalização do direito de superfície, algo
comum em todas as regiões do país (entre outros, TEPEDINO, Gustavo. Os direitos
reais no novo Código Civil. In Temas de Direito Civil. Rio de
Janeiro: Renovar, tomo II, 2006).
Em termos de redação, além disso, a
MP merece crítica contundente, e já se erguem vozes a empreender tal crítica,
como na coluna "Direito Civil Atual", publicada na semana anterior,
com texto de autoria do professor doutor Otavio Luiz Rodrigues Junior (Um ano longo demais e seus impactos
no direito civil contemporâneo).
Da regulamentação da sobrelevação sob o nome de direito de laje, dois
pontos parecem ser mais relevantes: (a) a abertura de matrícula registral
autônoma, um ponto delicado do direito de superfície no Brasil
(artigo 1510-A, parágrafo 5º); a permissão de constituição do direito de
laje sem submissão ao regime do condomínio edilício (artigo 1510-A,
parágrafo 6º).
Tratam-se de regras úteis e importantes, que, no entanto, não parecem
justificar a açodada opção do legislador de adotar a nomenclatura direito de
laje e dar-lhe autonomia em relação ao direito de superfície.
Se o que se queria era ressaltar a possibilidade do direito de
superfície por sobrelevação, bastava para tanto inserir um artigo no título V
do livro do direito das coisas. Para acrescentar à disciplina do direito de
superfície a possibilidade de abertura de matrícula separada para a propriedade
superficiária e a desnecessidade de atribuição de fração ideal do terreno,
outros dois artigos bastariam.
Não há sentido em inscrever como direito real autônomo no Código Civil
uma modalidade de um direito real já previsto, muito menos em utilizar-se
terminologia menos técnica quando já se dispõe de uma mais adequada em
utilização. A finalidade que o legislador buscou alcançar não está clara, assim
como clara não está a urgência que justificaria regular a matéria por medida
provisória.
Da forma como está posto o texto, o que se tem é: (a) a positivação de
um direito real novo cujo objeto já estava inserido em um direito real
preexistente; (b) o abandono de uma expressão consagrada e precisa por outra de
uso informal; (c) o problema topológico de se estabelecer a abertura de
matrícula e a dispensa de atribuição de fração ideal apenas para a superfície
por sobrelevação ou direito de laje, quando as regras deveriam se aplicar a
todo e qualquer direito de superfície.
Trata-se, portanto, de uma alteração pouco feliz na regulamentação do
direito de superfície, merecedora de reflexão e crítica por parte da doutrina,
bem como de oportuna reforma.
*Esta coluna é produzida pelos
membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil
Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa,
Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).
[1] “Art. 1.225.
São direitos reais: (...) XIII - a laje.”
[2] Art. 1.510-A. O direito real de laje consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. (...)
§ 1º O direito real de laje somente se aplica quando se
constatar a impossibilidade de individualização de lotes, a sobreposição ou a
solidariedade de edificações ou terrenos.
§ 2º O direito real de laje contempla o espaço aéreo ou o subsolo
de terrenos públicos ou privados, tomados em projeção vertical, como unidade
imobiliária autônoma, não contemplando as demais áreas edificadas ou não
pertencentes ao proprietário do imóvel original.
§ 3º Consideram-se unidades imobiliárias autônomas aquelas que
possuam isolamento funcional e acesso independente, qualquer que seja o seu
uso, devendo ser aberta matrícula própria para cada uma das referidas unidades.
§ 4º O titular do direito real de laje responderá pelos encargos e
tributos que incidirem sobre a sua unidade.
§ 5º As unidades autônomas constituídas em matrícula própria
poderão ser alienadas e gravadas livremente por seus titulares, não podendo o
adquirente instituir sobrelevações sucessivas, observadas as posturas previstas
em legislação local.
§ 6º A instituição do direito real de laje não implica atribuição
de fração ideal de terreno ao beneficiário ou participação proporcional em
áreas já edificadas.
§ 7º O disposto neste artigo não se aplica às edificações ou aos
conjuntos de edificações, de um ou mais pavimentos, construídos sob a forma de
unidades isoladas entre si, destinadas a fins residenciais ou não, nos termos
deste Código Civil e da legislação específica de condomínios.
§ 8º Os Municípios e o Distrito Federal poderão dispor sobre
posturas edilícias e urbanísticas associadas ao direito real de laje.
[3] VI Jornada de Direito Civil - Enunciado 568. O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, admitindo-se o direito de sobrelevação, atendida a legislação urbanística.
[2] Art. 1.510-A. O direito real de laje consiste na possibilidade de coexistência de unidades imobiliárias autônomas de titularidades distintas situadas em uma mesma área, de maneira a permitir que o proprietário ceda a superfície de sua construção a fim de que terceiro edifique unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo. (...)
§ 1
§ 2
§ 3
§ 4
§ 5
§ 6
§ 7
§ 8
[3] VI Jornada de Direito Civil - Enunciado 568. O direito de superfície abrange o direito de utilizar o solo, o subsolo ou o espaço aéreo relativo ao terreno, na forma estabelecida no contrato, admitindo-se o direito de sobrelevação, atendida a legislação urbanística.
Roberto Paulino de Albuquerque Júnior é doutor em Direito pela
UFPE, professor adjunto da Faculdade de Direito do Recife (UFPE) e tabelião de
notas.
Revista Consultor Jurídico,
2 de janeiro de 2017, 10h18
http://www.conjur.com.br/2017-jan-02/direito-laje-nao-direito-real-direito-superficie
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