“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

ALÍNEA L - Variações na jurisprudência do TSE mudam resultados de eleições de 2016



14 de dezembro de 2016, 20h30
Nem todos os resultados das eleições municipais deste ano estão definidos, embora o pleito tenha se encerrado em novembro. É que o Tribunal Superior Eleitoral voltou a apresentar decisões conflitantes em relação à inelegibilidade por improbidade administrativa nos termos da Lei da Ficha Limpa. Segundo dados da corte, apenas em relação ao segundo turno, feito em 92 cidades, chegaram mil processos. As variações na jurisprudência, portanto, prometem influenciar diretamente nos resultados das urnas.
última decisão foi tomada nesta terça-feira (13/12), quando o tribunal cassou o registro de candidatura do prefeito eleito de Foz do Iguaçu (PR). Por quatro votos a três, a corte entendeu que a condenação por improbidade administrativa não precisa dizer expressamente que houve enriquecimento ilícito se a conclusão é inevitável a partir da leitura do acórdão. Portanto, ficou definido que a Justiça Eleitoral pode interpretar o mérito das condenações da Justiça comum.


Para o ministro Herman Benjamin, não é necessário que o acórdão da condenação contenha a expressão “enriquecimento ilícito” para que seja aplicada a causa de inelegibilidade da alínea “l”.

Nesse caso, venceu o ministro Herman Benjamin, relator. A interpretação dele se aplica à alínea “l” do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar 64/1990. O dispositivo da chamada Lei das Inelegibilidades diz que não pode se candidatar quem tiver sido condenado por ato doloso de improbidade administrativa que tenha causado dano ao erário e tenha resultado em enriquecimento ilícito.
Para o ministro Herman, não é necessário que o acórdão da condenação contenha a expressão “enriquecimento ilícito” para que seja aplicada a causa de inelegibilidade da alínea “l”. No caso de Foz do Iguaçu, o acórdão falava em “diferença imotivada” entre o valor contratado e o valor pago numa contratação. No entendimento do ministro, é possível entender que a decisão da Justiça comum concluiu que houve enriquecimento ilícito, embora não tenha usado um sinônimo.
Com a decisão, o prefeito eleito de Foz do Iguaçu, Paulo Ghisi (PDT), teve a candidatura cassada e não poderá ser diplomado. Assumirá a prefeitura o concorrente dele no segundo turno, Chico Brasileiro (PSD), que teve quatro mil votos a menos. A cidade tem 165.730 eleitores, segundo dados do TSE sobre as eleições deste ano.
Vencedores vencidos

O ministro Herman foi acompanhado pelos ministros Luiz Fux, Henrique Neves e Rosa Weber. Os ministros Gilmar Mendes e Napoleão Nunes Maia Filho acompanharam o voto-vista da ministra Luciana Lóssio, que abriu a divergência. Saíram vencidos.
Para os três, embora o candidato tenha sido condenado por improbidade, a condenação não fala em enriquecimento ilícito. Fala apenas em dano ao erário, e a Lei das Inelegibilidades exige que as duas situações estejam presentes para configurar a inelegibilidade. Portanto, não caberia à Justiça Eleitoral avaliar o que o acórdão da Justiça comum quis dizer ou permite concluir.
Com isso, aplicaram a jurisprudência que o TSE havia firmado em maio deste ano, também sobre as eleições municipais deste ano. Era um caso de Quatá (SP), em que o candidato mais votado teve a candidatura impugnada por ter sido condenado por improbidade administrativa.
Entretanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo reformou a condenação do primeiro grau justamente por não ter visto “locupletamento das partes” decorrente do ato de improbidade. Com isso, reduziu as sanções aplicadas ao candidato — agora prefeito eleito.
A ministra Luciana Lóssio abriu divergência ao entender que, embora o candidato tenha sido condenado por improbidade, a condenação não fala em enriquecimento ilícito.

Venceu o voto da ministra Luciana Lóssio, que disse: “Se o próprio Tribunal de Justiça afastou o locupletamento dos envolvidos de modo categórico, não é possível ultrapassar essa conclusão para entender configurada a inelegibilidade nesta Justiça Especializada, devendo ser observada a tipificação legal feita pelo órgão competente para o julgamento da improbidade”.
Caso Maluf

A decisão do caso de Quatá aplicou o que havia sido definido pelo TSE em dezembro de 2014, quando foi liberada a candidatura do deputado federal Paulo Maluf (PP-SP). Naquela ocasião, em embargos de declaração, o tribunal definiu que a Justiça Eleitoral não pode tirar conclusões a partir do acórdão da Justiça comum, se a decisão não diz expressamente que houve enriquecimento ilícito.
O caso concreto é o de fraude a licitação nas obras do Túnel Ayrton Senna, em São Paulo. O Tribunal de Justiça de São Paulo condenou Maluf, prefeito na época da contratação, por improbidade, mas não falou sobre enriquecimento ilícito. O Tribunal Regional Eleitoral do estado cassou o registro de candidatura dele por entender que o acórdão do TJ conduzia à conclusão do enriquecimento ilícito.
Inicialmente, quando julgou o mérito, o TSE concordou com a decisão da corte regional. E abriu um período de conflitos entre os ministros. O ministro Dias Toffoli, então presidente do TSE, criticou o entendimento vencedor, da ministra Luciana, e disse que o acórdão não foi omisso porque não disse o que se queria que ele dissesse.
O ministro Gilmar Mendes, na época vice-presidente da corte eleitoral, chegou a chamar os colegas de despreparados e acusou o tribunal de julgar processos de acordo com as partes envolvidas. “Um tribunal que se propõe a criar jurisprudência a partir de capa de processo não se qualifica”, disse. 
Regras do jogo

A advogada Karina Kufa, que defendeu o prefeito eleito de Quatá, reclama da decisão de Foz do Iguaçu. Para ela, o tribunal mudou sua jurisprudência em prejuízo de um candidato e interferiu diretamente no resultado das eleições.
No entendimento dela, o TSE contrariou a jurisprudência definida pelo Supremo Tribunal Federal no caso dos chamados “prefeitos itinerantes”. São candidatos que, depois de dois mandatos em uma cidade, mudam o registro para outra para poder se candidatar de novo.
Nesse caso, o Supremo entendeu que o princípio da anualidade da lei eleitoral também se aplica a mudanças de jurisprudência. Ou seja, o princípio constitucional que diz que leis novas de matéria eleitoral só se aplicam depois de um ano de aprovadas também serve para mudanças de jurisprudência.
“Mudanças radicais na interpretação da Constituição devem ser acompanhadas da devida e cuidadosa reflexão sobre suas consequências, tendo em vista o postulado da segurança jurídica”, escreveu o relator da matéria no Supremo, ministro Gilmar Mendes (clique aqui para ler o acórdão do STF).
“Não só a Corte Constitucional, mas também o Tribunal que exerce o papel de órgão de cúpula da Justiça Eleitoral devem adotar tais cautelas por ocasião das chamadas viragens jurisprudenciais na interpretação dos preceitos constitucionais que dizem respeito aos direitos políticos e ao processo eleitoral. Não se pode deixar de considerar o peculiar caráter normativo dos atos judiciais emanados do Tribunal Superior Eleitoral, que regem todo o processo eleitoral.”
Questões diferentes

O advogado Gustavo Guedes, que representou os autores da impugnação da candidatura do prefeito eleito de Foz do Iguaçu, discorda da colega eleitoralista. Para ele, o que o TSE fez foi, na verdade, aplicar sua jurisprudência.
De acordo com Guedes, essa jurisprudência foi firmada em 2014, no caso do registro de candidatura de José Geraldo Riva (PSD), que concorria à reeleição para governador de Mato Grosso. Ele havia sido condenado por improbidade administrativa, mas o acórdão do Tribunal de Justiça do estado não falava expressamente que o esquema que resultou na condenação implicou enriquecimento ilegal de Riva.
Entretanto, de acordo com o relator, ministro João Otávio de Noronha, o enriquecimento decorria de “conclusão evidenciada em inúmeras passagens dos acórdãos condenatórios da justiça comum”. “O reconhecimento da justiça comum no que tange ao enriquecimento ilícito parece-me muito claro”, concluiu Noronha.
Segundo Guedes, o precedente do caso Maluf não se aplica à situação de Foz do Iguaçu. Isso porque ali, diz ele, a discussão se deu em torno de o ato de improbidade ter sido doloso ou culposo.
O acórdão do TJ de São Paulo falava em “culpa grave”, e o TRE do estado entendeu que a decisão da Justiça comum indicava dolo, e não culpa. “E nos embargos de declaração do caso Maluf ficou claro que a decisão foi a de que a Justiça Eleitoral não pode desdizer o acórdão da Justiça comum”, explicou Guedes.
Limpeza mais fácil

Em meio a essas discussões, ainda há outro elemento que pode causar ainda mais instabilidade às eleições. O ministro Herman Benjamin tem veiculado entre os colegas uma tese de que a Lei da Ficha Limpa, ao tratar da inelegibilidade dos condenados por improbidade administrativa, considera apenas o dano ao erário ou o enriquecimento ilícito.
Portanto, o ministro quer que, em vez de obrigar que haja as duas situações, apenas o reconhecimento de uma delas já cause a inelegibilidade do candidato. De acordo com o ministro, é o tribunal que considera a necessidade das duas situações “cumulativamente”, numa interpretação “literal e gramatical”.
Na opinião dele, a melhor interpretação deve levar em conta “os valores éticos-jurídicos que fundamentam o dispositivo [alínea ‘l’ do inciso I do artigo 1º da LC 64]”. “A conjunção ‘e’, utilizada em ‘lesão ao patrimônio público e enriquecimento ilícito’, não significa que se exija presença de ambos em decreto condenatório de suspensão de direitos políticos por ato doloso de improbidade administrativa.”
Segundo o ministro Herman, considerar inelegível apenas quem comete os dois atos de improbidade ao mesmo tempo contradiz o princípio da moralidade na administração pública, descrita no artigo 37 da Constituição Federal. Seria dizer que quem recebeu dinheiro de forma ilegal em decorrência de um ato de improbidade pode ser eleito. Ou que quem causou danos ao erário pode administrar um ente federado.
A tese foi rejeitada. Seguiu-se o voto da ministra Luciana Lóssio, para quem a Lei da Ficha Limpa pretendeu punir o ímprobo, e não o administrador inapto. “Não se pode admitir interpretação que vai além do que quis dizer o legislador.”
Pedro Canário é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.
Revista Consultor Jurídico, 14 de dezembro de 2016, 20h30


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Dívidas contraídas no casamento devem ser partilhadas na separação

OPINIÃO Improbidade: principais jurisprudências e temas afetados pela Lei 14.230/2021

Legalidade, discricionariedade, proporcionalidade: o controle judicial dos atos administrativos na visão do STJ