SENSO INCOMUM - O solilóquio epistêmico do ministro Roberto Barroso sobre precedentes
3 de novembro de 2016, 8h00
Recentemente, o ministro Roberto
Barroso publicou, em coautoria com Patrícia Perrone Campos Mello, artigo intitulado “Trabalhando com uma nova
lógica: a ascensão dos precedentes no direito brasileiro”. No referido
trabalho, há diversas inconsistências teóricas e sincretismos que denunciamos,
tanto no nosso livro O que é isto – O Precedente Judicial e as Súmulas
Vinculantes[1] quanto
nos Comentários ao Código de Processo Civil.[2]
Em síntese, o ministro Barroso e
Mello fazem uma apologia aos mecanismos vinculatórios do Direito brasileiro,
sem praticamente enfrentar nenhum argumento de quem se opõe ao tema tal qual
ele é apresentado no Brasil. Aliás, o artigo não dialoga. Seguindo certo tipo
de modelo de doutrina brasileira, ignora a história institucional acerca do
fenômeno. Ora, dezenas de juristas têm posição contrária. Mas Barroso e Mello
preferem o solilóquio epistêmico. Basicamente, o artigo incorre nos dois
chavões tradicionais: 1) o CPC-2015 aproxima o Brasil do common
law; e 2) os provimentos do artigo 927 são considerados de forma
simplificada como “precedente”.
Deveriam ter lido o caso Marbury v. Madison, de
mais de 200 anos atrás. Uma lei ordinária não pode alterar a competência e
função dos tribunais prevista originalmente na Constituição. Interessante é que
eles afirmam que o CPC nos aproxima do common law, mas não querem o
compromisso (ônus) do common law. Só a parte boa.
Não fosse por outro argumento, este
nosso texto poderia ser resumir ao seguinte: se a tese de Barroso e Mello está
baseada no conceito de que o sistema brasileiro se aproximou do common
law, então eles mesmos não poderiam dizer que os provimentos do artigo 927
são precedentes. A contradição é flagrante. Por quê? Porque precedentes do common
law não admitem, nem de longe, isso que querem estabelecer aqui no
Brasil. Por uma razão simples: precedentes do common law não-são-feitos-para-resolver-casos-futuros;
precedentes não nascem precedentes; sua aplicação posterior é contingencial.
Simples assim.
Mas, por amor ao debate, vamos
aprofundar as demais contradições do texto de Barroso e Mello. As conclusões,
por serem carreadas por ministro do STF, evidenciam a importância dos alertas
que constantemente lançamos em nossos escritos sobre o tema (diversos outros
autores têm demonstrado preocupação com essa simplificada transposição que que
querem fazer do common law para os mecanismos vinculatórios
brasileiros, e.g. Dierle Nunes, Alexandre Bahia, Marcelo
Cattoni, Flávio Quinaud, Nelson Nery Jr., Cassio Scarpinella Bueno, José Miguel
Garcia Medina, Maurício Ramires, Júlio Rossi, Marcos Cavalcanti, Eduardo
Fonseca, Lucio Delfino, Francisco Borges Motta e tantos outros). O
fetiche pelo precedente é tamanho que toda decisão judicial, para Barroso e
Mello, é precedente. Incrível. Se isso é verdade, como tratar uma
súmula vinculante? De todo modo, para os autores, o precedente se dividiria em
três: persuasivo, que vincula apenas as partes; com eficácia normativa forte,
que deve obrigatoriamente ser observado; e o intermediário, que seria uma
categoria residual. Sinceramente, perguntamos: qual a relevância de afirmar que
tudo é precedente? Permitimo-nos até a fazer uma ironia respeitosa: De que modo
o Direito brasileiro sobreviveu até hoje sem a categoria, por exemplo, do
precedente que vincula apenas as partes?
De forma resumida, Barroso e Mello
glorificam a nova “era precedentalistas” pretensamente trazida pelo CPC-2015,
para, em seguida, passar a tratar todos os provimentos vinculantes do artigo
927 como “precedentes”. Aqui já se inicia o sincretismo: decisões de IRDR,
RE/REsp repetitivos são equiparadas a decisões de controle abstrato de
constitucionalidade que, por sua vez, são equiparados às súmulas simples e
vinculantes. Com a devida vênia, esse equívoco é imperdoável. Ou seja, tudo
vira precedente, como se todos esses provimentos – por se tornarem de
observância obrigatória por lei – já virariam assim precedentes do common
law do dia para noite. Aliás, trata-se de retrocesso doutrinário. A
própria súmula vinculante, em seu início, era frequentemente equiparada ao
precedente. Essa errônea equiparação foi objeto de nossa constante crítica
(pelo menos desde 1993), depois de muita confusão, a maior parcela da doutrina,
fundamentada principalmente, nos textos de Castanheira Neves sobre assentos
começou a efetivar a devida distinção. Agora devemos retroceder? Novamente
equiparar precedente a súmula e ao julgamento de questões repetitivas?
Conforme já demonstramos em nossos
comentários ao CPC (op.cit), diferenciar súmula do genuíno precedente e do
julgamento de causas repetitivas não se faz para afirmar qual é melhor que o
outro. Pelo contrário, essa diferenciação deve ser feita porque
efetivamente são institutos jurídicos diferentes que comportam
operacionalização distinta. Não é porque assim queremos. É porque é
assim. Não nos esqueçamos, o próprio Código diferencia os institutos. Simples
assim.
Após fazer essa equiparação
sincrética dos provimentos, o texto de Barroso e Mello passa a expor a
necessidade de compreensão do que é dicta, ratio decidendi e holding.
Nesse ponto, são tratadas algumas exposições do Direito alienígena acerca
desses institutos. Aqui já fica uma dúvida: se súmula é a mesma coisa que um
precedente, o que é holding e o que é dicta em
uma súmula? Eis a questão. Mais: uma “tese” (dessas que o STF e o STJ fazem) é
“precedente”?
Voltando à temática, o artigo expõe:
“A ratio decidendi ou a tese é uma descrição do entendimento jurídico que
serviu de base à decisão. (...)Nos Estados Unidos, embora as decisões da
Suprema Corte contenham um syllabus, a providência de explicitação da tese
jurídica do julgamento é menos necessária. Isto porque o modelo de decisão
naquele país é deliberativo: os justices se reúnem reservadamente, in
conference, e produzem uma decisão unânime ou majoritária” (op.cit, p.
22/23).
Não nos parece adequado simplesmente
equiparar ratio decidendi a uma tese jurídica repetitiva
presente em RE e REsp. E nem equiparar precedente a qualquer tese jurídica que
o STF e o STJ façam. Não sabem que a genuína ratio decidendi vai
se estabelecendo e aclarando com o devir interpretativo em função dos futuros
casos em que o “genuíno” precedente passa a ser replicado? Não sabem que
a ratio decidendi não é imposta pelo tribunal superior
prolator da decisão? Não sabem que ela se estrutura pelo trabalho dos
causídicos e das instâncias inferiores? Ou alguém imagina o justice
Marshall finalizando o voto e escrevendo: doravante, está
criado o controle difuso de constitucionalidade?
Vamos exemplificar: O parágrafo 11 do
artigo 1.035 estabelece, claramente, que deve ser fixada a tese no acórdão,
porque estamos diante de julgamento de causas repetitivas. Ou seja, a decisão
do STF e STJ nesse caso será o parâmetro normativo redutor de complexidade de
uma litigiosidade repetitiva. Não se trata de uma aplicação de precedente no
estilo common law em que há uma criação de complexidade para
se investigar o que efetivamente é ratio decidendi para
orientar causa futuras. Não nos parece adequado a afirmação de que no common
law, os tribunais superiores definam o que é a ratio
decidendi e a compilam em um enunciado abstrato de tese para aplicação
das instâncias inferiores. É equivocado dizer isso.
Do mesmo modo, também incorre em
sincretismo a afirmação de que teria havido a necessidade de ressurgirmos com a
teoria da eficácia vinculante dos motivos determinantes das decisões do
controle abstrato de constitucionalidade. Trata-se de tese doutrinária iniciada
na Alemanha, local em que ela sofre severas críticas e diminuída aplicação.[3] De
todo modo, isso nada tem a ver com o genuíno precedente. E nem com o precedente
à brasileira.[4]
Por fim, denunciamos novamente o
caráter realista (no sentido do realismo abrasileirado,
tipo
“de-qualquer-modo-o-Direito-é-mesmo-aquilo-que-o-Judiciario-diz-que-é-e-a-maior-parte-da-doutrina-concordará) da
forma como é apresentada a vinculação brasileira. Em nenhum escrito nosso
afirmamos que devem ser ignoradas as formas como decidem os tribunais
superiores. Aliás, um dos autores (Streck[5])
já há mais de 20 anos diz que as súmulas jamais foram um mal em si, porque súmulas, como os precedentes, são sempre textos e textos
são interpretáveis. Todavia, quando o STF/STJ pode emitir decisões de
observância obrigatória e fixar teses em abstrato (coisa que
só acontece por aqui)[6] –
que no entendimento dos autores – seriam a materialização da ratio
decidendi, em verdade, não estamos falando de sistema de
precedentes para valer. Na realidade, com isso, camuflamos nosso padrão
vinculatório sui generis.
Conforme nossos comentários ao artigo
926 do CPC, a integridade impõe um compromisso de todo julgador com a cadeia
decisória em que ele está inserto. O que estamos dizendo claramente é que
existe campo para se teorizar e argumentar de forma similar ao precedente
do common law, todavia, afirmar que inauguramos uma nova era
precedentalista ou que todos os dispositivos do artigo 927 são precedentes
“porque sim”, no mínimo isso é sincretismo teórico. Daí a importância de
se garantir uma interpretação conforme a Constituição do artigo 927 sustentada
minimamente em duas premissas que não abandonamos: 1) todo
provimento vinculante do artigo 927 comporta interpretação e não se aplica por
mero silogismo; 2) precedente genuíno não se equipara a
julgamento de litigiosidade repetitiva, e os tribunais superiores não podem
fixar teses equiparando-se a legisladores, sendo que a fixação da tese é
consequência direta dos casos concretos devidamente julgados em amplo
contraditório e com a fiel observância do inciso IX do artigo 93 da CF e do
parágrafo 1º do artigo 489 do CPC.
Assim, consideramos que a leitura do CPC feita por Barroso e Mello não é
adequada, porque desrespeita a Constituição. Isto porque lei ordinária não pode
alterar o exercício da jurisdição (em relação à própria lei, por exemplo). Sim,
pois se o CPC-2015 tiver alterado a relação entre lei e jurisdição, criando
precedentes vinculantes, o novo CPC não seria inconstitucional? Estamos convictos
que, valendo as regras do jogo democrático-constitucional, não é possível que
uma lei ordinária introduza um sistema de precedentes vinculantes sem violar o
modelo constitucional do processo adotado pela Constituição.
Em termos teóricos, repetimos que não há dúvida de que, por trás da tese
de que o CPC teria adotado um sistema de precedentes vinculantes está o
realismo jurídico (modulado ao Brasil). Nesse sentido, chamamos à colação um
positivista como Frederick Schauer, que, apesar de analítico, está muito mais
próximo de nossas afirmações que das de Barroso e os demais defensores da tese
aqui criticada. Selecionamos duas partes que julgamos fundamentais: o que é
semelhante para fins de aplicação de precedente é algo controvertido e que o
precedente tem pedigree histórico.
"Initially, the principle that like cases should be decided
a like would seem to make an unassailable argument for precedent. But
the difficulty of denying that like cases should be decided alike is precisely
the problem. The statement is so broad as to be almost meaningless. The
hard question is what we mean by 'alike.'".[7]
Schauer está dizendo que é uma
obviedade em favor dos precedentes argumentar que um caso semelhante deve ser
julgado igual o outro. E que isso é praticamente irrelevante na defesa do
precedente. O que efetivamente interessa é definir o que são casos
semelhantes. O conceito de o que é efetivamente semelhante é algo
altamente controvertido. Ou seja, há uma dimensão interpretativa na
aplicação do precedente que não pode ser ignorada. Não basta afirmarmos que
casos iguais devem ser decididos de forma igual. Isso é meramente performático. A
lei também é igual para todos e deve ser aplicada de forma igual para casos
semelhantes. Ainda para ficarmos na expressão do Schauer, o precedente
tem um pedigree histórico (historical pedigree,) que não pode ser
ignorado em sua aplicação.[8]
Portanto, de qualquer lado que se olhe, da hermenêutica ou do
positivismo jurídico (normativo), a tese sustentada por Barroso e Mello não se
sustenta. Isto não quer dizer que não precisemos, urgentemente, definir o que
queremos no Brasil. Afinal, temos que responder a seguinte pergunta:
Queremos que o STJ e STF façam teses abstratas e coloquem o rótulo de “precedente”
ou queremos que, de fato, tenhamos um sistema que respeite a coerência e a
integridade do direito, em que a palavra “precedente” seja diferenciada de
súmula e de tese oriunda de recurso repetitivo e assunção de competência?
Claro que, para que tenhamos
coerência e respeitemos a integridade, cada caso deve influenciar e dele temos
de retirar um principio que ilumine e seja seguido pelos demais tribunais e
juízes. Isso é elementar. Cada instituto com suas peculiaridades: uma súmula
tem seu DNA; ela não é precedente; uma tese de IRRD e AC tem sua holding vinculatória;
um caso julgado gera um precedente para casos análogos. Mas o que não se pode
admitir é que os tribunais passem a legislar, fazendo um rearranjo
institucional. O que não podemos admitir é que os tribunais “façam” precedentes
com o fito de antecipar as respostas dos casos futuros. Não é disso que trata o
CPC-2015.
Ou seja, não pode(re)mos aceitar que
tudo o que está, basicamente, nos artigos 926 e 927 seja colocado no
mesmo saco e se diga: eis aqui o “sistema de precedentes”, quando, por exemplo,
uma súmula tem uma cadeia de precedentes que a formam. Logo, se súmula não é
precedente, é porque nem tudo é precedente. E muito menos se pode admitir que o
STF e o STJ façam “teses” batizando-as com o nome de “precedentes”.
Precedente não é ementa, não é súmula e nem mesmo mero enunciado em abstrato. E
ainda por cima se diga que “isso é assim porque no common law é
feito desse modo”. A boa doutrina não há de permitir isso.
Tudo isso para dizer que, respeitando
a posição do ministro Barroso e de quem assim pense, queremos apenas que sejam
respeitadas as opiniões em contrário. E que haja diálogo e não imposição. Não é
o fato de o autor deter a autoridade - em um país em que a doutrina tem receio
de contrariar as autoridades - que possamos dizer, como que a imitar o velho
adágio do positivismo moderno de que autorictas non veritas facit legis (é
a autoridade e não a verdade que faz a lei) que agora temos Auctoritate
Summi Court est – non veritas - quod dicatur quod "precedent" (é
a autoridade da suprema corte que faz o precedente e não a sua verdade).
Resta saber se o texto de Barroso, porque escrito por um ministro da
Suprema Corte, foi feito para dialogar ou é magister dixit.
De nossa parte, insistimos na tese de que não existe esse “sistema de
precedentes” do qual falam. E, sim, estamos dispostos ao diálogo. Não
cremos que a doutrina brasileira, em um pais de um milhão de advogados e
milhares de pessoas escrevendo livros, possa se quedar submissa às imposições
contrárias à própria lei. Desafiamos a que seja demonstrado em que lugar do CPC
está posto o tal sistema de precedentes vinculantes. E em que lugar está
legitimado que os tribunais superiores possam elaborar teses em abstrato, com
efeito vinculatório. O que queremos dizer, também, é que a doutrina não pode se
tornar caudatária de teses ou conceitos que levem o apelido de
“precedente”. Isso seria de uma violência simbólica ímpar. Isso seria
enterrar a tradição de que quem faz a lei é o parlamento. E seria
institucionalizar um nefasto realismo jurídico à brasileira.
Numa palavra final: não queremos
fazer um solilóquio sobre esse importantíssimo assunto que pode mudar a
história do direito no Brasil. Por isso, propomos aos autores (e aos demais doutrinadores),
o contrário: um colóquio. Na verdade, um diálogo. Em que não haja
respostas antes das perguntas.
Veritas, non auctoritas!
[5] Como se diria
em Portugal, “desculpa lá”, mas calha registrar que Lenio Streck nunca foi
contra precedente em si. Streck é o maior defensor da ideia de integridade e
não é contra precedente, desde que devidamente aplicado. Aliás, no Brasil
poucos juristas tem a coragem de dizer que juízes não tem discricionariedade
para decidir. E quem capitaneou a retirada da palavra “livre” do art. 371 e foi
o responsável foi introduzir o art. 926 foi Streck.
Do mesmo modo, Georges Abboud em seus
livros trata da importância de se respeitar a cadeia decisória, por exemplo, um
dos sete requisitos mínimos para construção da resposta correta é a
identificação dos provimentos judiciais que tratam da questão jurídica a ser
dirimida. Cf. Discricionariedade Administrativa e Judicial, SP:
RT, 2014, p. 473. A questão é mais desenvolvida no Processo
Constitucional Brasileiro, op. cit., p. 756 et seq.
[6] Aqui, uma
notícia: as teses “em abstrato” feitas pelo STF e STJ são similares às
diretivas normativas dos Tribunais da antiga União Soviética, da corte de
cassação cubana e da Suprema Corte da Rússia. “Nossas” teses, a par dessa
similitude, não encontram similares (a não ser nas diretivas normativas da
URSS, etc). Esse assunto, aliás, será pauta de outro Senso Incomum. Temos de
desmi(s)tificar essas teses equivocadas que parecem já fazer “ninhos
epistêmicos” em terrae brasilis.
http://www.conjur.com.br/2016-nov-03/senso-incomum-soliloquio-epistemico-ministro-barroso-precedentes
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