SEGUNDA LEITURA - Sentença disciplinando ação da PM em protesto é de discutível validade
O Brasil tem assistido nos últimos quatro anos ao crescimento do
interesse e da vontade da sociedade em participar das decisões políticas. O
fato tem promovido uma maior conscientização da população e resultado em uma
mobilização nunca antes imaginada.
O que está acontecendo deve ser visto com otimismo. O controle exercido
pela sociedade não é apenas a melhor forma de melhorarem as instituições
públicas, na verdade é a única. E estas formas de controle podem ir da vaia
constrangedora a um político corrupto em um restaurante ao voto consciente nas
eleições.
Entre as formas de manifestação, destacam-se a liberdade de reunião e de
protestos. Assegurar o exercício destes direitos é dever do Estado.
Contudo, é também dever do Estado assegurar que eles sejam exercidos de forma a
não colocar em risco outros bens jurídicos também protegidos, como a vida, a
liberdade de locomoção e o patrimônio, seja público ou privado.
Em outras palavras, o direito de reunião e de manifestação é garantia
prevista no artigo 5º, inciso XVI, da Constituição, e deve ser garantido pelo
Estado. Porém, poucos sustentariam (ou sustentam) que possam resultar em dano
ou simplesmente perigo para terceiros. Foge ao bom senso.
No âmbito das manifestações — que são o foco deste coluna — a Defensoria
Pública de São Paulo propôs Ação Civil Pública, requerendo diversas
providências limitando a ação da Polícia Militar do de São Paulo e o dever de
indenização por danos morais decorrentes de condutas ocorridas a partir do ano
de 2013, quando elas se iniciaram, por força do aumento no valor das passagens
de ônibus.
A sentença julgou a ação parcialmente
procedente para condenar o Estado de São Paulo à elaboração de um projeto de
atuação que defina como agirá diante de manifestações de protestos, inclusive “indicar
à organização do evento que conta com um oficial que possa atuar como um
porta-voz do comando, o que naturalmente criará um meio de comunicação,
demonstrando que seu interesse não é o de impedir a reunião”[1].
Além disto, condenou o réu a pagar R$ 8 milhões por danos morais, por ter
amedrontado as pessoas em oito ocasiões e a indenizar as que tiverem sido
atingidas individualmente, tudo em 30 dias, sob pena de multa de R$ 100 mil por
dia.
Muito embora fundada em sólida doutrina estrangeira, a sentença parece
ter se preocupado mais com as discussões teóricas do que com os fatos. Não se
sabe, sequer, onde, quando e como se deram os excessos que originaram a
imposição da indenização de R$ 8 milhões. Não há como analisar as oito
ocorrências que justificaram chegar-se à conclusão de que a PM agiu de forma
desastrada. Há, apenas, uma menção genérica de que a Polícia agiu “com
demasiado grau de violência, não apenas contra os manifestantes, mas também
contra quem estava no local apenas assistindo ou trabalhando” (fl. 1475).
O Código de Processo Civil dispõe no
artigo 489, inciso II, que a sentença dará os fundamentos de fato e de direito.
A fundamentação, direito constitucional das partes (artigo 93, inciso IX),
permite-lhes saber porque ganharam ou perderam. Por isso mesmo os fundamentos
devem ser explícitos e não genéricos. Nelson e Rosa Nery ensinam que “o texto
coíbe a utilização pelo juiz, de fundamento que caberia para embasar qualquer
decisão”.[2] O
Supremo Tribunal decidiu que “a decisão judicial não é um ato autoritário, um
ato que nasce do arbítrio do julgador, daí a necessidade de sua apropriada
fundamentação”.[3] E
se não for fundamentada, evidentemente, a sentença é nula.
Pois bem, analisada a questão da inexistência na sentença de elementos
que permitam avaliar os eventuais erros da PM na condução do controle das manifestações
de protesto e a possível nulidade da sentença, cumpre enfrentar outros aspectos
não menos importantes.
O magistrado, na sentença “obriga a
ré a elaborar um projeto de atuação de sua Polícia Militar, a aplicar-se quando
se trate de manifestação de populares em protestos”.[4] A
proposta com certeza é bem intencionada. Mas é de duvidoso acerto. Em um mundo
que se transforma a cada dia, em que o terrorismo vai chegando ao nosso país[5] e
em que a tecnologia traz circunstâncias novas (como o uso de drones), é mais
fácil imaginar que uma Resolução da Secretaria da Segurança se torne um
engessamento da atividade policial do que um passo a favor da efetividade.
Mas não é este o principal aspecto. A dúvida maior está em poder o Poder
Judiciário determinar ao Poder Executivo que crie norma regulamentadora para
casos futuros. Não se está a ferir o artigo 2º da Constituição, que afirma
serem os Poderes harmônicos e independentes entre si?
Não há dúvida de que o Direito não
aceita mais a visão tradicional da doutrina, tão bem exposta por Seabra
Fagundes em 1957, no sentido de que o Judiciário só poderia examinar o ato
administrativo sob o aspecto da legalidade.[6] Atualmente,
o Judiciário, através de ações que discutem direitos fundamentais ou políticas
públicas, constantemente revê as decisões do Executivo.
Coisa diversa é, todavia, substituir-se ao Poder Executivo e determinar
a realização de uma norma regulamentadora, especificando detalhes, como a
designação de um Oficial para contatos com os manifestantes ou o uso deste ou
daquele material. O Judiciário decide casos concretos, define direitos, mas não
edita atos abstratos, ainda que de forma indireta ordenando a outro Poder de
Estado, para casos futuros.
Vejamos a indenização por dano moral
coletivo. O estado de São Paulo deverá pagar R$ 8 milhões a título de danos
morais sociais porque, segundo a sentença, “a truculência policial
amedrontou as pessoas, atingindo sua dignidade”[7] Quem
são estas pessoas? Quem sofreu o dano? Toda a sociedade paulistana? Os que lá
estavam? Nenhum foi identificado em razão de ferimentos recebidos? A sentença
não faz uma referência sequer.
E mais. O Tribunal Regional do
Trabalho da 16ª Região registra que “o dano extrapatrimonial coletivo decorre
da lesão a um interesse difuso da sociedade, causador do sentimento geral de
desapreço e descrença nas instituições públicas, e, pois, passível de
indenização em favor e benefício dessa própria coletividade”.[8] Há
elementos a indicar que a sociedade paulistana, a partir desses eventos, passou
a descrer das instituições públicas estaduais, em especial a PM? Em havendo, em
que folhas do processo se encontram as provas? Supondo sua existência, qual foi
o critério para chegar-se ao valor fixado?
A ausência de fundamentação da conclusão em fatos provados nos autos e a
omissão de justificativa para chegar-se ao valor fixado, dificulta,
impossibilita mesmo, a compreensão do julgado.
Ainda. A sentença não fez qualquer
consideração sobre as agressões aos PMs. Para ficar em apenas uma, menciona-se
o vídeo em que black blocksatacam o coronel que comandava a
operação, pondo em risco a sua vida. Talvez o magistrado deste fato não tivesse
ciência, mesmo estando na internet desde 23 de outubro de 2013.[9] Nas
manifestações, em meio a uma maioria absoluta de pessoas bem intencionadas, há um
percentual cujos objetivos vão além do protesto pacífico.
A sentença, na motivação, faz
referência a movimento estudantil no Estado do Paraná, registrando que em São
Paulo a PM vem retirando os alunos sem autorização judicial.[10] A
lembrança do Paraná abre oportunidade a que mais informações sejam dadas a
respeito. A primeira delas, segundo notícia do jornal Gazeta do Povo de
ontem, é que quase 70% dos paranaenses são contrários às ocupações das escolas
e 84% acham que os estudantes deveriam manifestar-se de outra forma.[11] Não
será demais lembrar que no dia 24 de outubro passado, dentro de uma
escola ocupada, um estudante foi assassinado por outro com facadas no pescoço e
no tórax.[12]
Do que foi dito se conclui que as manifestações são importantes e
constituem um direito fundamental dos brasileiros. Mas a segurança pública
também é direito constitucional assegurado a todos pelo artigo 144 da mesma
Constituição. É preciso encontrar um ponto de equilíbrio entre estes dois
direitos fundamentais, com base na nossa realidade e não na de países europeus,
absolutamente diferentes.
Em síntese, ao mesmo tempo em que os excessos praticados por policiais
devem ser punidos, a atuação dos agentes da ordem, no caso a Polícia Militar,
não deve ser objeto de obstáculos. Estes, se criados, acabarão tendo resultado
oposto ao pretendido, ou seja, menor será a segurança e maior a ofensa aos
direitos humanos da população.
[1] http://www.conjur.com.br/dl/1016019-1720148260053-condenacao-pm-sp.pdf
[2] NERY JR. Nelson E Nery Rosa M. Andrade.Código de Processo Civil Comentado. 16ª. Ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1248.
[3] STF, RE 540.995/RJ, relator min. Menezes Direito, 1ª. Turma, j. 9/2/2008.
[4] Sentença citada, fl. 1481.
[5] Em 21/7/2016, a Polícia Federal prendeu 12 pessoas suspeitas de planejar um atentado terrorista durante a Olimpíada, no Rio de Janeiro. Em http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/07/pf-prende-celula-do-estado-islamico-que-planejava-atentado-na-rio-2016.html, acesso em 4/11/2016.
[6] SEABRA FAGUNDES, o Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 191957, p. 167.
[7] Sentença citada, fl. 1485.
[8] TRT 16ª. Região, processo 00611007320085160011 0061100-73.2008.5.16.0011, rel. desembargador José Evandro de Souza, j. 22/1/2016.
[9] https://www.youtube.com/watch?v=CI6imHAbggg, acesso em 4/11/2016.
[10] Sentença citada, fl. 1477.
[11] Gazeta do Povo, 5/11/2016, p.9.
[12] http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/adolescente-e-encontrado-morto-dentro-de-colegio-estadual-ocupado.html, acesso em 4/11/2016.
[2] NERY JR. Nelson E Nery Rosa M. Andrade.Código de Processo Civil Comentado. 16ª. Ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 1248.
[3] STF, RE 540.995/RJ, relator min. Menezes Direito, 1ª. Turma, j. 9/2/2008.
[4] Sentença citada, fl. 1481.
[5] Em 21/7/2016, a Polícia Federal prendeu 12 pessoas suspeitas de planejar um atentado terrorista durante a Olimpíada, no Rio de Janeiro. Em http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2016/07/pf-prende-celula-do-estado-islamico-que-planejava-atentado-na-rio-2016.html, acesso em 4/11/2016.
[6] SEABRA FAGUNDES, o Controle dos Atos Administrativos pelo Poder Judiciário. 3ª. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 191957, p. 167.
[7] Sentença citada, fl. 1485.
[8] TRT 16ª. Região, processo 00611007320085160011 0061100-73.2008.5.16.0011, rel. desembargador José Evandro de Souza, j. 22/1/2016.
[9] https://www.youtube.com/watch?v=CI6imHAbggg, acesso em 4/11/2016.
[10] Sentença citada, fl. 1477.
[11] Gazeta do Povo, 5/11/2016, p.9.
[12] http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/adolescente-e-encontrado-morto-dentro-de-colegio-estadual-ocupado.html, acesso em 4/11/2016.
http://www.conjur.com.br/2016-nov-06/segunda-leitura-sentenca-disciplinando-acao-pm-protesto-discutivel-validade
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