FOGUEIRA DA CENSURA - Ao usar Lei de Anistia para condenar jornal, STJ tenta apagar a história do país
Que o Brasil não tem memória, já se
sabe. O país corre agora o risco de perder o seu passado. Pelo menos foi o
que decidiu a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que na última
quarta-feira (5/10), ao condenar o jornalDiário de Pernambuco a
pagar indenização de R$ 50 mil ao ex-preso político e ex-deputado federal
Ricardo Zarattini Filho. Entendeu o tribunal que a Lei de Anistia de 1979, que
beneficiou Zarattini, deu-lhe o direito ao esquecimento de seu passado como
militante de oposição à ditadura militar.
Mesmo que em seu voto vencedor o
ministro Paulo de Tarso Sanseverinotenha feito ressalvas, levando em conta
eventual negligência na apuração dos fatos por parte do jornal, o que assusta é
a tese por ele defendida, que coloca fatos e a história do país sob a proteção
da Lei de Anistia feita especialmente para salvaguardar a dignidade de pessoas.
“Não se mostra admissível qualquer tipo de gravame contra integrantes daquele
cenário histórico por força de suas convicções e atos praticados naquele tempo
de conflitos”, disse Sanseverino.
A questão levada à 3ª Turma em Recurso Especial apresentado pelo jornal
dizia respeito à responsabilidade civil da empresa jornalística pela entrevista
concedida por Wandenkolk Wanderley na qual afirmou que Ricardo Zarattini
participou do atentado a bomba no Aeroporto dos Guararapes, de Recife, em 1966.
A entrevista foi publicada em 1993 e Wanderley, ex-delegado de polícia e
político pernambucano com atuação nos anos 1960 e 1970, conhecido por suas
posições anti-comunistas, morreu em 2002. O atentado do qual ele falava, no
qual morreram duas pessoas, tinha como alvo o então ministro da Guerra e futuro
presidente da República na ditadura militar, Arthur da Costa e Silva, que nada
sofreu.
Acusado de participar do atentado, o engenheiro, ex-militante de
oposição à ditadura militar, ex-preso-político e deputado federal nos anos
2000, Zarattini foi inocentado de qualquer participação no atentado, de acordo
com documentos apresentados pela Comissão Estadual da Verdade em 2013. Mas tudo
isso é história e, de acordo com a decisão da 3ª Turma, talvez seja melhor esquecê-la.
A tese que resultou na aplicação da Lei de Anistia ao caso, foi
levantada originalmente pelo juiz de primeiro grau: “A Lei de Anistia ensejou o
esquecimentos dos embates envolvendo os denominados terroristas e as forças de
repressão, sendo perdoados tanto os ditos subversivos como seus algozes”,
escreveu o juiz E acrescentou: “Todos voltamos a ser integrantes do mesmo povo,
vinculados pela solidariedade que deve orientar as relações político sociais,
sendo inadmissível que venha a prosperar qualquer tipo de gravame contra
integrantes daquele cenário histórico por força de suas convicções e atos
praticados naqueles tempos de discórdia. Urge o esquecimento dos ódios”.
O Tribunal de Justiça de Pernambuco reformou a sentença de primeiro
grau, por entender que “a matéria jornalística que ensejou a ação de
indenização não se notabilizou pela exploração inescrupulosa, nem tampouco
mercenária sobre o fato, mas sobretudo, buscou emprestar ares históricos aos
fatos que envolveram a pessoa do entrevistado, observando sobretudo a liberdade
de expressão do cidadão”.
Zarattini foi apontado como autor de
atentado, mas, para 3ª Turma do STJ, anistia impede referências ao período.
Reprodução
Reprodução
O relator do Recurso Especial apresentado por Zarattini ao STJ foi o
ministro Villas Bôas Cueva. Ao abrir divergência, Sanseverino reconheceu que a
negligência do jornal em apresentar os fatos seria suficiente para justificar o
seu dever de indenizar o recorrente: “Verifica-se que a empresa jornalística,
ao publicar a entrevista deveria ter feito as ressalvas necessárias no sentido
de preservar a integridade moral do recorrente ou, ao menos, conceder-lhe
espaço para que pudesse exercitar o direito de resposta às imputações firmadas
pelo entrevistado”.
Mas o ministro foi além e encampou a tese do juiz de primeiro grau
quanto à aplicação da Lei de Anistia: “Não se pode esquecer de que os fatos
narrados na matéria jornalística, ocorridos durante a ditadura militar, foram
anistiados pelo Estado brasileiro em razão de uma decisão política inspirada na
ideia de pacificação social”.
Mesmo correndo o risco de ter de jogar na fogueira da censura todos os
livros de História que tratam do período compreendido pela Lei 6.683/1979, o
ministro vinculou o caso ao “denominado direito do esquecimento”, ou seja, “o
direito de restringir o conhecimento público de informações passadas cuja
divulgação presente pode dar causa a prejuízos ou constrangimentos”.
O advogado Alexandre Fidalgo, especialista na área de imprensa, é
direto: "O entendimento está totalmente equivocado". A Lei da
Anistia, afirma, age sobre as consequências do fato. Ou seja, caso Zarattini
tenha de fato participado do atentado, não poderá responder na Justiça
por nada que tenha ocorrido em consequência disso. "Mas isso não afeta o
direito da sociedade de debater e refletir sobre o que aconteceu"afirma.
Na votação da 3ª Turma ficaram vencidos o relator Villas Bôas Cueva e
João Otávio de Noronha. Acompanharam a divergência iniciada por Paulo de Tarso
Sanseverino, os ministros Marco Aurélio Bellizze e Marco Buzzi, convocado da 4ª
Turma para desempatar.
A decisão acrescenta estranheza aos
tempos estranhos atuais em que, com facilidade, se tomam liberdades contra a
liberdade dos indivíduos. Nesta semana, o Supremo Tribunal Federal reafirmou
sua interpretação da Constituição que permite a prisão de condenados em
segunda instância, antes mesmo do trânsito em julgado de sentença
condenatória.
Em tempos de operação "lava jato" e de Ministério Público em
franca campanha por aprovar "10 Medidas contra a Corrupção” — como se
fosse constituído por legisladores bem intencionados —, decisões como a do STJ
e do STF servem para aumentar a sensação de que, em matéria penal, o país
caminha para trás. Neste quadro, o direito de informação ou a presunção de
inocência, bem como outros direitos individuais podem ser relativizados em nome
de um falseado conceito de dignidade humana, da segurança da sociedade ou de
moralidade pública. Sem falar no tal direito ao esquecimento, que ameaça
colocar no lixo a própria história do Brasil.
Clique aqui para ler o voto
vencedor.
http://www.conjur.com.br/2016-out-07/usar-anistia-condenar-jornal-stj-tenta-apagar-historia
Comentários
Postar um comentário