MP NO DEBATE - Questão do aborto legal precisa ser tratada sob a ótica do direito à saúde
Neste mês de setembro, há um grande
debate a respeito da ação civil pública ajuizada no Supremo Tribunal Federal,
que tem como um dos pedidos, a autorização para realização de aborto para
gestantes portadoras de zika, em razão do intenso sofrimento
psicológico. O STF decidirá, em breve, a respeito desta demanda. O Ministério
Público já deu parecer favorável, caracterizando o aborto legal nesta
circunstância.
O caso gerou uma ampla discussão sobre a necessidade de se assegurar o
direito à assistência médica a gestante, sobretudo em situações de aborto
legal. A possibilidade de aborto, nos casos em que a gestante gera um feto com
anencefalia, já foi questionada no STF, que permitiu esta prática. Note-se que
na sociedade brasileira, assim também na América Latina em geral, ainda existe
uma resistência muito grande em relação à necessidade de se garantir os
direitos reprodutivos às mulheres. É fato que este desrespeito aos direitos
consagrados na legislação nacional e nos tratados internacional se deve aos
anseios por controlar a sexualidade das mulheres, até porque são elas que
engravidam.
Em outro caso, a Associação Artemis
ingressou com petição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em
relação ao não atendimento à gestante em caso de aborto legal, decorrente de
estupro, alegando a prática de tortura física e psicológica, em caso ocorrido
em Goiás. O caso ainda não foi analisado[1]
Em quais situações o aborto, nos termos da legislação brasileira, é
permitido? Qual o alcance da proteção aos direitos humanos das mulheres na
assistência ao aborto legal? Neste contexto, como compreender o direito à
assistência à saúde integral, inclusive na situação de aborto legal?
Com efeito, desde o início da década
de 1990 foram editados muitos instrumentos legislativos visando garantir o
atendimento, na rede pública de saúde, aos casos de aborto legal. Isto foi
possível em razão da intensa mobilização de diversos grupos de mulheres, em
união com a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo).[2] Cumpre
destacar que o Ministério da Saúde editou duas normas técnicas a respeito deste
tema: “Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual
contra mulheres e adolescentes” e a norma técnica: “Atenção humanizada ao
abortamento”.[3]
Como sabemos, a legislação brasileira
vigente permite expressamente o aborto em duas situações específicas: quando a
vítima sofreu um estupro ou há risco de morte da mulher[4].
Nestas duas hipóteses, a lei permite a prática do aborto legal, que deve ser
prestado, pelo sistema público e privado de saúde, de forma segura e integral,
a todas as gestantes. A partir do precedente no STF de 2012, por 8 votos a
2, foi permitida a interrupção da gestação nos casos de anencefalia.
Neste julgamento, os ministros decidiram que os médicos que realizam a cirurgia
e as gestantes que decidam interromper a gravidez não praticam crime. Assim
deliberou o STF:[5]
“O Tribunal, por
maioria e nos termos do voto do Relator, julgou procedente a ação para declarar
a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da
gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128,
incisos I e II, todos do Código Penal, contra os votos dos Senhores Ministros
Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente, acrescentavam
condições de diagnóstico de anencefalia especificadas pelo Ministro Celso de
Mello; e contra os votos dos Senhores Ministros Ricardo Lewandowski e Cezar
Peluso (Presidente), que a julgavam improcedente. Ausentes, justificadamente,
os Senhores Ministros Joaquim Barbosa e Dias Toffoli. Plenário, 12.04.2012.”
Como ocorre com uma grande parte da
legislação pátria, o fato de existir uma legislação específica e uma decisão do
STF, não garante necessariamente que esse direito das gestantes seja efetivado
pelas instituições de saúde. Com efeito, os serviços de aborto legal no Brasil
vêm enfrentando obstáculos crescentes, em virtude das pressões exercidas por
extratos conservadores da sociedade brasileira e determinados setores
religiosos, em que pese à laicidade do Estado brasileiro. Antes existiam
aproximadamente 65 serviços[6] que
atendiam às gestantes que necessitavam realizar o procedimento de aborto legal,
atualmente os números diminuíram sensivelmente para aproximadamente 30
serviços, muito embora não seja possível obter a informação exata acerca do
número de serviços, por falta de registros formais.[7] A
transparência a respeito do número de serviços, a sua distribuição regional (ou
da inexistência destes serviços em determinadas regiões do Brasil) e o número
de atendimentos em caso de aborto legal, também não se encontram sistematizados
de forma eficiente, técnica e ampla, o que por si só já caracteriza uma omissão
estatal no dever de prestar a assistência integral à saúde.
É preciso ter coragem para dar a
visibilidade e a dimensão necessárias ao aborto legal. Conforme Pesquisa
Nacional sobre o aborto, uma em cada cinco mulheres brasileiras entre 18 e 29
anos já realizou aborto no Brasil.[8]A
questão precisa ser tratada sob a ótica do direito à saúde. Sabemos que o
aborto inseguro gera perigo à vida das gestantes, em especial àquelas mulheres
em situação de vulnerabilidade social. A discussão sobre este tema não pode ser
polarizada apenas entre aqueles que defendem a liberdade de escolha da mulher e
aqueles que opinam pela criminalização desta ação, e diminuição progressiva de
suas hipóteses legais. Esta discussão precisa levar em conta os dados
científicos disponíveis, as estatísticas de mortalidade materna, bem como a
tendência mundial dos países que conseguiram reduzir estes índices, com
preservação da saúde das mulheres e economia de recursos. Também deve ser
levado em conta a legislação nacional e os tratados internacionais ratificados
pelo Brasil[9]
O Brasil avançou em termos de ampliação quanto à assistência médica às
gestantes, durante a gravidez, o parto e pós-parto, alcançando quase que a
totalidade das gestantes, mas o mesmo não ocorre quanto aos serviços de aborto
legal.
Além disso, desafios persistem quanto
à qualidade da assistência prestada. Parece-nos que o pleno acesso à saúde, em
casos de aborto legal, é um objetivo importante para a melhoria do acesso à
saúde das gestantes no Brasil, mas persiste um longo caminho para sua plena
concretização.[10]
A pesquisa chamada “Nascer no Brasil”
traça um triste panorama quanto à atenção obstétrica no nosso país.[11] Uma
das observações importantes diz respeito à necessidade de melhora não apenas na
assistência após a gravidez, mas também um melhor esclarecimento do
planejamento reprodutivo para evitar gravidez indesejada, o que não ocorre com
sucesso atualmente. A pesquisa concluiu que 45% das mulheres entrevistadas não
desejavam estar grávidas. Este número aumenta em 2/3 em se tratando de
adolescentes que não desejavam estar grávidas.[12] É
sabido que o grupo que está mais exposto à violência doméstica é aquele formado
por adolescentes. Estas sofrem diversas formas de violência doméstica, em
especial a sexual, inclusive por parte de pessoas próximas (padrasto, pai, avô,
tio, etc.), o que as torna muito inseguras na esfera privada, local onde
deveriam estar mais protegidas. Incumbe ao Estado, portanto, fornecer a
segurança e o acesso à saúde para estas adolescentes.
É imprescindível darmos publicidade
aos altos índices de estupro no Brasil. A cada 11 minutos uma
mulher/adolescente é estuprada no Brasil.[13] Dessa
forma, a hipótese de aborto legal em caso de estupro atinge um expressivo
número de mulheres brasileiras.
As constituições e legislações de muitos países, na região da América
Latina inclusive, reconhecem os direitos sexuais e reprodutivos, em especial o
direito à assistência à saúde e ao aborto legal, com respeito aos princípios da
igualdade e da dignidade da pessoa humana.
Em que pese à importância destes
Direitos Humanos, que são partes essenciais do discurso político e jurídico no
Brasil e na América Latina, a prática de diversos países revela que muitas
vezes estes direitos são considerados como normas programáticas, ou seja, não
precisam ser efetivados imediatamente. Em muitos países, há uma margem de
discricionariedade para a garantia e efetivação destes direitos e em diversos
casos o reconhecimento destes direitos depende de razões de conveniência
política e religiosa.[14]
Deve-se entender, porém, que os direitos sexuais e reprodutivos,
incluindo o acesso ao aborto legal, são garantias exigíveis que geram
obrigações concretas e específicas, são, portanto, responsabilidades Estatais.
A falta de cumprimento destas obrigações caracteriza uma violação aos
compromissos juridicamente vinculantes assumidos por meio de tratados
internacionais devidamente incorporados ao direito interno.
O artigo 12, da Convenção CEDAW,
Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,
dispõe o seguinte: “...os Estados-Partes garantirão à mulher assistência
apropriada em relação à gravidez, ao parto e ao período posterior ao parto,
proporcionando assistência gratuita quando assim for necessário, e lhe
assegurarão uma nutrição adequada durante a gravidez e a lactância.”[15] A
assistência apropriada em relação ao aborto legal é aquela que respeita os
princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana, portanto constitui um
direito humano fundamental.
A existência de importantes compromissos internacionais assinados e
adotados pelo Estado brasileiro, como a Convenção CEDAW, geram obrigações no
que concerne ao imediato cumprimento. A despeito disso, muitas destas
obrigações não estão sendo cumpridas a contento. Um exemplo disso é a garantia
ao atendimento eficiente na área da saúde, em especial para a mulher que
necessita fazer um aborto legal.
Há um desconhecimento quanto às normas pertinentes ao aborto legal. A
discussão encontra-se permeada por preconceitos e dogmas religiosos. A
Constituição Federal de 1998 contém o princípio da igualdade, e dispõe sobre o
direito à plena assistência à saúde, o que necessariamente inclui a assistência
à saúde da mulher em situação de aborto legal. O direito à saúde encontra
previsão no artigo 6º, da Constituição Federal Brasileira. Além disso, o Estado
Brasileiro é laico.
Na prática, todavia, observa-se o descumprimento de inúmeras diretrizes
contidas em portarias, na legislação nacional e no direito internacional. Por
esta razão, há uma distância significativa entre a previsão legal e a sua plena
efetivação. Se houver violação ao direito das mulheres gestantes, é possível
procurar os órgãos públicos tais como o Ministério Público Estadual, o
Ministério Público Federal, a Defensoria Pública, a central 180 e o disque
saúde 136, além de formalizar reclamações nos Conselhos de Classe. Os órgãos
públicos deverão analisar o caso concreto, podendo tomar medidas judiciais,
tanto na esfera cível como na criminal. Se as instituições brasileiras não
resolverem os casos de violação a estes direitos, em especial quanto ao acesso
à saúde, esses casos poderão ser, eventualmente, questionados perante as
instâncias internacionais.
Para tanto, é muito importante que a
gestante saiba que ela necessita, em primeiro lugar, reunir determinados
documentos, dentre outros, o cartão de acompanhamento da gestante e a cópia do
prontuário médico. Todas as gestantes têm direito a estes documentos, bastando
solicitá-los no estabelecimento de saúde. Além disso, nos termos da Portaria
1508/2005, não é necessária a apresentação de boletim de ocorrência. Isto
porque referida Portaria dispõe o seguinte: “Norma Técnica sobre Prevenção e
Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e
Adolescentes não obriga as vítimas de estupro da apresentação do Boletim de
Ocorrência para sua submissão ao procedimento de interrupção da gravidez no
âmbito do SUS”[16]
Na construção de uma agenda para a garantia ao pleno acesso à saúde para
gestante são essenciais: a divulgação das normas que regulamentam o aborto
legal, no âmbito internacional e nacional, o que possibilitará o acesso à
justiça ou aos comitês e cortes internacionais, quando houver violação à
legislação; o amplo debate com participação da sociedade, dos profissionais de
saúde, da academia, do sistema de justiça; a afirmação dos direitos sexuais e
reprodutivos com um olhar interseccional (não apenas de gênero, mas também
étnico racial e de classe) e regional; a prevenção da gravidez na adolescência;
a sensibilização na formação dos profissionais de saúde e do direito sobre os
direitos das gestantes; a garantia ao direito ao acompanhante à gestante; a
garantia ao direito à informação; a garantia ao acesso pleno à saúde e o
incentivo às boas práticas obstétricas, fundamentadas sempre em evidências
científicas.
Temos que nos colocar no lugar da
gestante portadora de zika, da gestante que gera um feto com
anencefalia, da mulher ou adolescente vítima de estupro, da mulher em risco de
vida, pois assim poderemos entender melhor a importância de se facilitar o
pleno acesso à saúde. Espera-se, por isso, que o STF compreenda o sofrimento
psicológico da mulher gestante portadora de Zika para o fim de
reconhecer o seu acesso pleno à saúde, nos exatos termos da Constituição Cidadã
de 1988, da Convenção CEDAW e do sistema internacional de
Direitos Humanos das Mulheres. Uma adequada assistência à gestante
possibilitará que o Brasil finalmente atinja o 5º Objetivo do Milênio,
melhorando a saúde materna, uma vez que atualmente os índices de morte materna
são alarmantes e subnotificados, o que caracteriza uma verdadeira omissão
estatal na garantia aos direitos reprodutivos das mulheres brasileiras.
[1] ARTEMIS,
KEUNECKE, Ana Lucia, MARQUES, Raquel, SOUSA, Valéria, http://artemis.org.br/artemis-faz-denuncia-a-comissao-interamericana-de-direitos-humanos-da-oea/,
em setembro de 2016.
[2] SANTIN,
Myrian, Sexualidade e Reprodução: da natureza aos direitos: a incidência da
Igreja Cem viratólica na Tramitação do PL 20/91, aborto legal, e PL 1151/95,
união civil de pessoas do mesmo sexo. Tese (Doutorado), Programa de
Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas, Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2005.
[7] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/07/1796717-procuradoria-apura-omissao-do-estado-nos-servicos-de-aborto-legal-no-brasil.shtml
[8] DINIZ,
Debora, MEDEIROS, Marcelo, Aborto no Brasil: uma Pesquisa Domiciliar
com Técnica de Urna, ANIS, Instituto de Bioética, Direitos Humanos e
Gênero.
[9] PORTO, Rozeli
Mari, Profissionais de Saúde e Aborto Seletivo em Hospital Público em
Santa Catarina, em Sexualidade, Reprodução e Saúde, HEILBORN, Maria Luiza e
outros, Editora FGV, 2009.
[10] O mesmo
ocorre com a humanização do parto, veja PAES, Fabiana Dal Mas Rocha, O Parto
Humanizado, Conjur.
[12] Nascer no
Brasil, Inquérito Nacional sobre o Parto e Nascimento, Coordenação Maria do
Carmo Leal, Cadernos de Saúde Pública, Volume 30, 2014.
[13] http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2016/05/30/numero-de-casos-de-estupro-no-brasil-pode-ser-10-vezes-maior.htm
[14] Derecho a La
Vida: Diálogo sobre justicia, igualdad de género y Derechos Reproductivos en
América Latina, III Congreso Latinoamericano Jurídico sobre Derechos
Reproductivos, 14, 15 y 16 Octubre de 2013, México.
[15] Artigo
12, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as formas de Discriminação contra
a Mulher.
http://www.conjur.com.br/2016-set-12/mp-debate-questao-aborto-tratada-otica-direito-saude
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