PROCESSO POLÍTICO-JURÍDICO - Natureza dupla fragiliza eficácia do impeachment para corrigir governos
30 de agosto de 2016, 11h30
Há quase 10 meses, o Brasil vem
discutindo se o processo de impeachment da presidente afastada
Dilma Rousseff é legítimo ou é golpe. Para os defensores da primeira tese,
trata-se de um procedimento regular, previsto na Constituição, uma vez que a
petista cometeu crimes de responsabilidade ao fazer as pedaladas fiscais e
editar decretos de crédito suplementar sem a autorização do Congresso.
Impeachment de Dilma vem
mostrando as falhas do mecanismo no Brasil.
Quem se alinha à narrativa do golpe, por sua vez, afirma que essas
condutas não constituem delito e foram praticadas por todos os presidentes
desde a redemocratização sem maiores consequências, e que o processo foi aberto
por vingança do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
Mas esse debate só existe porque o impeachment tem
suas falhas. Suas imperfeições decorrem de sua natureza dupla político-jurídica
e o cisma que ele gera perante o resultado das urnas. A combinação torna o
instrumento inócuo no objetivo de responsabilizar governantes e corrigir a
administração pública. Em outras palavras: o desgaste de um processo de impeachment é
desproporcional à solução que dele é esperada.
Origem criminal
O impeachment nasceu na Inglaterra, no século XIV, como um processo criminal. Ou seja, ele atingia o cargo e a pessoa da autoridade. Dessa maneira, as penas não se limitavam à perda do mandato, e poderiam incluir prisão e até execução. A ideia por trás da criação desse instituto era limitar o poder do rei, evitando que ele concedesse privilégios indevidos a aliados, nomeasse ministros que não eram aptos para exercer essas funções e debilitasse o tesouro público.
O impeachment nasceu na Inglaterra, no século XIV, como um processo criminal. Ou seja, ele atingia o cargo e a pessoa da autoridade. Dessa maneira, as penas não se limitavam à perda do mandato, e poderiam incluir prisão e até execução. A ideia por trás da criação desse instituto era limitar o poder do rei, evitando que ele concedesse privilégios indevidos a aliados, nomeasse ministros que não eram aptos para exercer essas funções e debilitasse o tesouro público.
Segundo o modelo inglês, a Câmara dos
Comuns acusa o político e a Câmara dos Lordes julga se ele cometeu high
crimes and misdemeanors (algo como “crimes graves e má-governança”).
No conturbado século XVII, o instrumento teve suas hipóteses de incidência
ampliadas, e passou a ser instaurado devido a qualquer violação funcional dos
servidores públicos. Isso fez explodir o número de processos de impeachment — só
entre 1620 e 1649, houve mais de 100 casos.
Porém, a extensão do procedimento a
casos meramente políticos enfraqueceu o instituto, que entrou em declínio. A
última tentativa de iniciá-lo ocorreu em 1848, quando o secretário das Relações
Exteriores, Lord Palmerston, foi acusado de assinar um acordo secreto com a
Rússia czarista. O pedido, entretanto, foi rejeitado. Na ocasião, o
ex-primeiro-ministro inglês Robert Peel garantiu que “os dias do impeachment acabaram”.
Mesmo em decadência na antiga
metrópole, o instrumento foi incluído na Constituição dos recém-independentes
Estados Unidos da América, que entrou em vigor em 1789. Os representantes das
13 colônias não queriam criar um “feto da monarquia”, e sabiam que, para isso,
era preciso estabelecer formas de responsabilizar os governantes. Assim,
aprovaram a inclusão do impeachment na Carta Magna mesmo antes
de decidirem se o Poder Executivo seria liderado por um conselho ou uma só
pessoa.
Transformação política
Nesse processo, os founding fathers norte-americanos mudaram a natureza do instituto, que deixou de ser criminal e passou a ser político. O objetivo primordial agora era proteger o Estado, e não punir o infrator. Com isso, as penas ficaram limitadas ao cargo, e deixaram de atingir seu ocupante. Em seu livro O Impeachment, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Paulo Brossard apontou que o impeachment dos EUA equivale ao voto de censura dos regimes parlamentaristas, que dissolve o congresso e gera a convocação de novas eleições.
O Impeachment, de Paulo
Brossard, é o livro mais completo sobre o tema no país.
Inicialmente, os constituintes das 13
colônias estabeleceram que caberia impeachment em casos de treason(traição)
e bribery (suborno). Entretanto, essas hipóteses foram
consideradas insuficientes. Então incluíram maladministration (má-administração)
no rol, termo que deflagrava o procedimento em seis dos 13 estados. Tal
sugestão foi rejeitada, por ser vaga. A solução encontrada foi adicionar a
expressãohigh crimes and misdemeanors. Esses “crimes graves” são os que
apenas autoridades podem praticar. Contudo, para serem condenadas, é preciso
haver proof beyond a reasonable doubt (prova acima de qualquer
suspeita).
De forma semelhante ao processo
inglês, nos EUA a câmara baixa (Câmara dos Representantes) acusa, e a câmara
alta (o Senado) julga. Lá, apenas dois presidentes sofreram processo de impeachment.
Em 1868, o democrata Andrew Johnson (vice de Abraham Lincoln, que assumiu
quando este foi assassinado) foi acusado de violar o Tenure of
Office Act, que condicionava a demissão de certos cargos no gabinete à
aprovação prévia do Senado, ao dispensar o secretário de Defesa. Por um voto,
ele foi absolvido pelos senadores. Ao também democrata Bill Clinton foram
imputadas as violações de perjúrio e obstrução da Justiça por ter mentido sobre
as relações sexuais que manteve com a estagiária Monica Lewinsky. Mas ele foi
inocentado por larga margem.
Importação malfeita
O impeachment foi importado para o Brasil logo na nossa primeira Constituição como país independente, a de 1824. Sob esta Carta, era um processo penal que podia ser deflagrado contra ministros que cometessem traição, suborno, abuso de poder ou que “obrassem contra a liberdade, segurança, ou propriedade dos cidadãos”, entre outras hipóteses. Houve apenas uma acusação: contra José Clemente Pereira, que era ministro da Guerra e foi absolvido. Devido ao “parlamentarismo às avessas” que o país viveu na segunda metade do século XIX e ao fato de o imperador poder absolver os condenados, o instituto ficou adormecido.
Com a Proclamação da República e a
promulgação de uma Carta Magna fortemente inspirada pela dos EUA (a de 1891), o processo virou
político. No documento, foram estabelecidas as regras que, de forma geral,
vigoram até hoje. Ou seja: foi fixado que a Câmara dos Deputados dá início ao
procedimento e o Senado profere o julgamento.
A principal inovação do modelo
brasileiro foi a exigência da prática de crime de responsabilidade para o impeachment.
Logo, o Brasil não tem um processo criminal, como a Inglaterra, nem um processo
político, como os EUA, e sim um processo político-jurídico.
Convite à conveniência
Essa natureza dúplice é responsável pela grande insegurança sobre o impeachment no Brasil. É preciso que a autoridade tenha cometido crime de responsabilidade, mas os parlamentares não precisam fundamentar seus votos, como é exigido de magistrados, e acabam decidindo por conveniência política.
Um exemplo disso está na declaração da senadora Rose de Freitas
(PMDB-ES) sobre as reais causas do processo contra Dilma. "Na minha tese,
não teve esse negócio de pedalada, nada disso. O que teve foi um país
paralisado, sem direção e sem base nenhuma para administrar".
Tal falta de certeza faz com que o
processo de responsabilização de autoridades brasileiro seja falho, e causador
de instabilidades institucionais e econômicas. De acordo com o jurista e colunista
da ConJur Lenio Streck, os congressistas brasileiros
estão mostrando que, nesse tipo de procedimento, os requisitos legais não têm
peso.
Para Lenio Streck, aspecto jurídico
do impeachment é ignorado por políticos.
“O impeachment, no modo
como vem sendo praticado, é um arremedo, um álibi para transformar o
presidencialismo em parlamentarismo. Exige-se crime — e isso é jurídico. Mas
para dizer o que é esse ‘jurídico’, há liberdade absoluta para dizer qualquer
coisa. É uma fraude linguística. Chama-se de jurídico aquilo que é, na prática,
político”.
Nessa linha, o cientista político e
professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais Fábio
Wanderley Reis afirma que a legislação brasileira sobre o impeachment é
“muito ruim”, e permite um jogo “no qual o Supremo Tribunal Federal foge de sua
responsabilidade como esteio de nosso sistema constitucional através do ir e
vir entre a dimensão jurídica e a dimensão política, que acaba simplesmente por
autorizar mal disfarçadas decisões baseadas em interesses político-partidários
miúdos”.
Por outro lado, o professor o
professor de Direito Constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano argumenta
que a falha não está na Constituição ou na Lei
dos Crimes de Responsabilidade (Lei 1.079/1950), mas na forma como elas são
interpretadas. Segundo ele, todos os tipos de julgamento são jurídicos. Dessa
forma, têm que se submeter à legislação. “Senão não é julgamento, é
linchamento”, garante.
A diferença entre um juiz é um parlamentar é que este pode absolver o
presidente mesmo que constate a prática de crime de responsabilidade, por
conveniência política, ao passo que um magistrado é obrigado a condenar se
houver delito. Todavia, esse raciocínio não vale no sentido oposto, alerta
Serrano: para destituir uma autoridade, é necessário provar que ela cometeu
irregularidades.
Perfil único
Uma solução para esses problemas seria definir uma única natureza para o processo de impeachment. O ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão sugere que apenas a admissibilidade do processo e sua confirmação sejam políticas.
Nessa proposta, após obtido o aval da Câmara e do Senado, haveria um
julgamento presidido pelo presidente do STF com base nos entendimentos de um
júri convocado por esta corte. Assim, o ministro faria a instrução, e cidadãos
decidiriam se o presidente é ou não culpado pelos atos a ele imputados. Em caso
de condenação, a decisão ainda teria que ser homologada por dois terços do
Senado para cassar o mandato do governante.
Pedro Serrano também opina que um veredito do Supremo seria mais robusto
juridicamente do que um dos senadores. No entanto, o constitucionalista faz a
ressalva de que tal via seria menos legítima, pois os ministros do STF não são
eleitos diretamente pelo povo.
Ainda assim, o caminho judicial conferiria imparcialidade ao julgamento,
que, na forma atual, é promovido por um “tribunal de exceção”, segundo Streck.
“Se pegarmos os votos do Senado no
modo como foram dados para a pronúncia, a maioria é nula. Por exemplo, o
senador João Alberto Souza (PMDB-MA) confessou que não há crime. Logo, como
votou a favor do recebimento da acusação, seu voto é nulo. Chegamos a um
absurdo: no tribunal do júri, quando alguém é condenado contrariamente à prova
dos autos, qualquer tribunal anula esse veredicto. No impeachment,
os ‘jurados’ nem escondem sua parcialidade. Até nisso o júri popular é mais
honesto que o julgamento do Senado. Mais: do modo como o Senado se comporta,
transforma-se em tribunal de exceção, o que é vedado pela Constituição”.
Por três anos, o Brasil chegou a ter
um modelo mais jurídico de impeachment. A Constituição de 1934 atribuiu
o julgamento dos crimes de responsabilidade do presidente da República a um
Tribunal Especial, composto por nove integrantes: três ministros do Supremo
(incluindo o presidente), três senadores e três deputados federais. A corte
seria comandada pelo líder do STF, que só votaria em caso de empate. Em 1937,
contudo, a “Constituição polaca”
restabeleceu a palavra final ao Senado, então chamado de Conselho Federal.
Proximidade política
Nem todo mundo entusiasma-se um processo de impeachment jurídico, entretanto. Paulo Brossard, em seu livro sobre o assunto, explica que os senadores receberam competência para julgar crimes de responsabilidade porque magistrados, que não participam do dia a dia da política, não têm adequada aptidão para avaliar a qualidade dos atos dos governantes.
“O tribunal que fosse chamado a
intervir nessas questões, ou correria o risco de decidir de maneira inadequada,
se preso a critérios de exclusiva legalidade, ou, para decidir bem, talvez
tivesse que recorrer a critérios metajurídicos e extrajudiciais; e não teria
nenhum sentido o recurso ao judiciário”, avaliou o jurista em O
Impeachment.
Na obra, ele destaca as virtudes de um procedimento puramente político,
como o dos EUA, e lamenta que o brasileiro não tenha seguido o mesmo caminho –
embora reconheça que o vago crime de “atentar contra a Constituição” possa dar
ao instrumento nacional o caráter genérico que o norte-americano possui.
Contra o voto
Mesmo com uma só natureza, o impeachment ainda não resolveria o que talvez seja seu principal problema: a falta de legitimidade de parlamentares (ou juízes) para retirar um mandato que foi conferido ao governante pelo povo — que, conforme destaca Serrano, é a fonte de todo o poder.
Pior ainda é destituir um governante
sem que ele tenha praticado delitos, somente por ele ser impopular, aponta o
ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro. Em sua visão, isso
cria um trauma no país, e afeta a legitimidade dos próximos presidentes.
Receosos de perder aprovação popular e, consequentemente, o cargo, eles podem
ser forçados a adotar medidas populistas para manterem o mandato.
Uma saída seria inserir na
Constituição o referendo revogatório,
também conhecido como recall. O instrumento permite que seja
convocada uma consulta popular a respeito da permanência ou deposição do
governante. Nesta situação, o vice assume ou são convocadas novas eleições,
dependendo do tempo que falta para o fim do mandato. O mecanismo
existe na Venezuela, no Equador e na Bolívia, e em estados e cidades de
EUA, Argentina, Canadá e Suíça.
Serrano afirma que o recall seria
mais legítimo para destituir um governante.
Esse instituto aumenta a insegurança
jurídica e a instabilidade política. Porém, o viés democrático de suas decisões
compensa esses pontos negativos, analisa Pedro Serrano. Para o professor da
PUC-SP, o recallconviveria com o impeachment, e seria
usado para resolver crises políticas, quando o presidente perdeu apoio popular
parlamentar.
Apego à formalidade
Os brasileiros, por terem sido colonizados por portugueses, têm apego à formalidade. Tanto que a primeira medida para resolver um problema social ou econômico é criar ou alterar uma lei. Mas Janine Ribeiro defende que, dessa vez, deixemos de lado a via institucional e nos concentremos em elaborar uma solução cultural.
Essa guinada consistiria em
substituir o atual ambiente político e conflito por um onde predominasse a
conciliação. Foi esse caminho que mantém congelado há quase 170 anos o impeachment na
Inglaterra, ressalta o filósofo. “Quando há um impasse, eles negociam. Isso
gera resultados mais legítimos e duradores”.
Independentemente da opção a ser adotada, é consenso que algo precisa
ser feito. Fábio Wanderley Reis considera perigoso o fato de um procedimento
tão grave ter sido aplicado duas vezes em 24 anos. E o professor afirma que,
sem mudanças, o processo de responsabilização de autoridades será banalizado.
“A desmoralização que vemos agora (e que de certa forma já ocorreu com Collor,
absolvido judicialmente depois da condenação política) arrisca transformá-lo em
arroz de festa”.
http://www.conjur.com.br/2016-ago-30/natureza-dupla-fragiliza-eficacia-impeachment-corrigir-governos
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