Opinião - Prova ilícita validada por boa-fé: lá se vai a criança com a água suja
8 de
agosto de 2016, 9h26
Pindorama na escuta. Ouvimos e lemos que o juiz
Sergio Moro defendeu, no parlamento — sim, no parlamento — medidas para
combater a corrupção, dentre elas, a maioria que está no famoso pacote
“eugênico” proposto pelo Ministério Público Federal.
Por incrível ou crível que pareça, Moro insistiu
naquilo que já estava no pacote proposto pelo MPF: a de que é possível usar
provas ilícitas no processo penal, desde que elas tenham sido obtidas com
“boa-fé”. Ele também defendeu aquele dispositivo tipo Minory Report
(escrevi sobre isso) pelo qual se faz um
teste para saber se a pessoa tem propensão a delinquir. Claro que esse teste só
é aplicado a alguns setores do funcionalismo. Para juízes, membros do MP e
ministros... não. Claro. Claríssimo.
Para Moro, embora a Constituição seja taxativa no
sentido de que são vedadas provas ilícitas, se estas — as provas ilícitas —
forem obtidas com boa-fé, tudo bem. Ou seja, pode ser ilícita, mas ficará
esquentada “quando os benefícios decorrentes do aproveitamento forem maiores do
que o potencial efeito preventivo” (sic).
Bingo. O processo penal passou a ser utilitarista.
Os fins justificam os meios. A questão é saber: como coadunar a obtenção de uma
prova ilícita, proibida, que a civilização contemporânea abomina, com uma
pretensa boa-fé? Vou fazer uma escuta clandestina, mas... é de boa-fé. Ah, bom.
Então está bem. Vou dar um “aperto” no acusado, mas, sem problemas, porque, se
for de boa-fé, tudo fica bem.
Quero ler em “voz alta” o que diz a CF — e que a
comunidade jurídica ouça: Artigo 5º, LVI — são inadmissíveis, no processo,
as provas obtidas por meios ilícitos. O que se pode ler
disso? O que é inadmissível? Aquilo que não pode ser admitido, não pode ser
aceito; o que é prova? Como diria um famoso manual, prova é aquilo que serve
para demonstrar algo; e o que é “obtidas”? Como diria outro manual, é aquilo
que se obtém, se capta, pega, captura; e o que são “meios ilícitos”? São meios
que a lei não permite. Bingo. Atenção: a própria CF diz no mesmo artigo 5º, X,
que são invioláveis a intimidade, a vida privada, da honra, a imagem, o
domicílio, e as comunicações, salvo nos casos permitidos no inciso XII, do
mesmo artigo, a das comunicações telefônicas. Bingo. Obtenção de prova ilícita
viola, sempre, de algum modo, aquilo que a própria CF estabelece como
inviolável e/ou protegido.
Daí a pergunta: De onde se poderia tirar qualquer
ilação no sentido de que a CF poderia ser driblada por intermédio da boa-fé? A
boa-fé é incompatível com a ilegalidade. Onde está escrito na CF que “se for de
boa-fé a violação da vida privada, da honra, etc”, então poderá ser validada?
Ora, não brinquemos com coisa séria. Só falta alguém dizer que a obtenção
criminosa/ilícita de uma prova pode ser convalidada, na hipótese de o crime (de
obtenção ilícita — por exemplo, tortura, invasão de domicilio, etc) ser
culposo. Quem sabe “uma tortura culposa” ou “uma escuta clandestina culposa”?
Triste é o pais que, sob pretexto de combater o
crime, assume que pode violar garantias. A proposta atira fora o bebê junto com
a água suja. Pior: o que é isto, a “boa fé” ligada a uma ilicitude? Não
estaríamos diante de uma contradição performativa ou de um paradoxo? Como
assim? Ilicitude mais boa-fé igual a licitude? Genial, não?
Para mim, o Direito, por conquista civilizatória,
não pode aceitar comportamento antijurídicos e nem consentir que dessa
ilegalidade o Estado tire proveito em prejuízo do cidadão. Ilegal será o órgão
Judiciário que venha a admitir o uso de prova colhida de forma antijurídica. E
não se negocia isso. Não preciso discutir, aqui, a questão das provas obtidas
por fonte autônoma, sem nexo causal. Se são autônomas e não tem nexo causal com
as ilícitas, nem precisamos discutir essa questão.
Se a tese proposta pelo MPF e por Moro vingar, faço
logo uma sugestão. Façamos o seguinte: um juiz é suspeito de corrupção (ou um
membro do MP ou outro agente estatal). Temos a certeza “moral” de que o sujeito
está envolvido. Mas temos poucas provas. De acordo com o CPP e a legislação,
ainda não há elementos concretos para o afastamento. Mas... a gente-sabe-que-ele-está-comendo-bola
ou facilitando-coisas-mediante-propina. Aí vem a minha proposta (o estagiário
levanta a placa e avisa: ele está sendo sarcástico): desde que haja boas razões
e haja boa fé no pedido de afastamento, ele pode ser deferido. O Estado (leia-se,
a instituição à qual está ligado o tal agente) alega boa-fé no pedido e,
pronto. Afaste-se o. Afinal, a boa-fé se transformou em um princípio jurídico
processual penal. Vale para esquentar prova ilícita e vale para afastar agente
público do cargo, “quando os benefícios decorrentes do afastamento forem
maiores do que o potencial efeito deletério da permanência do agente na
função”.
É ruim assim? Também acho. Mas pau que bate em
Chico... Além do mais, o perigo é de a moda do “novo princípio” (da boa-fé)
pegar e ser estendida para a prisão cautelar. Se o MP pedir a prisão movido por
boa-fé, o juiz pode decretá-la, sempre que os benefícios de correntes do
encarceramento forem maiores do que o potencial lesivo da permanência do
acusado em liberdade. Duvidam?
A comunidade jurídica já não está cansando dessa
relativização de garantias? O que dizem os processualistas penais? E os
penalistas? O problema é que fomos deixando a coisa acontecer. Em nome de
finalidades maiores, entregamos a alma. Porque quando a prova ilícita é usada
contra nossos inimigos ou adversários, ela é bem empregada. Só é ruim se for
contra nós. Assim fomos deixando as coisas acontecerem. O parlamento aprovou o
artigo 212 do CPP implementando o sistema acusatório, para retirar do juiz parcela
de seu poder inquisitório. O que fez a expressiva maioria dos processualistas
penais? Não se importou quando os juízes não cumpriram o que está expresso
claramente no dispositivo. “Juiz só faz perguntas complementares...”. Até o STF
(HC 103.525) passou a mão por cima do descumprimento, ao dizer que a não
obediência dessa formalidade processual era apenas uma nulidade relativa. E a
doutrina deixou assim. Escrevi duramente contra isso. Mas, a dogmática tinha
coisas mais importantes a fazer. Depois um juiz federal divulga ilicitamente —
e nisso é confesso — conversas telefônicas gravadas entre um ex-presidente e a
presidente da República e... nada acontece. E parcela da comunidade jurídica
achou bonito. Agora vem o pacote do MPF com a relativização da prova ilícita. E
assim vai.
Dizer mais alguma coisa? Apenas repito: assim
vai...
http://www.conjur.com.br/2016-ago-08/prova-ilicita-validada-boa-fe-la-bebe-agua-suja
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