Diário de Classe - "Não se preocupe, doutor, aqui eu não aplico o novo CPC"
Há muitos anos, logo após 1988, reclamava-se que os juízes não
aplicavam a Constituição, mas apenas a lei ordinária. Até a metade da década de
1990, mais ou menos, era comum encontrar decisões em que se ignorava a tal
“aplicabilidade imediata” das normas definidoras de direitos fundamentais, sob
o argumento da inexistência de legislação regulamentadora.
Pois bem. Passados todos esses anos, ingressamos
numa nova fase. Agora não se aplica nem mesmo a lei, sobretudo quando
instituidora de alguma garantia fundamental. Proponho, então, a inauguração de
duas séries (que poderiam ser exploradas pela ConJur). E a adoção de
medidas por parte da OAB, evidentemente.
Da série “eu não aplico o NCPC!”
Quem frequenta os foros sabe serem poucos os juízes que estão designando audiência de conciliação ou de mediação, conforme determina o artigo 334 do novo Código de Processo Civil.
Quem frequenta os foros sabe serem poucos os juízes que estão designando audiência de conciliação ou de mediação, conforme determina o artigo 334 do novo Código de Processo Civil.
O mesmo está ocorrendo, sistematicamente, em
tribunais de diversas unidades da federação — e também no STJ — quando o que
está em jogo é o dever de fundamentar as decisões expresso no artigo 489,
parágrafo 1º, do novo CPC, cuja aplicação vem sendo relativizada.
Outra situação já bem conhecida diz respeito à
contagem dos prazos nos juizados especiais. Segundo a Nota Técnica 1/2016 do
Fonaje (em seguida, certamente virá o enunciado), o artigo 219 do novo CPC, que
trata da contagem de prazos processuais em dias úteis, não deve ser aplicado. E
por quê? Ora, em razão da especialidade da Lei dos Juizados Especiais (que, na
verdade, sequer dispõe sobre o modo como devem ser contados os prazos
processuais).
Isso para não falar de um curso que vem sendo
oferecido sobre o tema “Novo CPC e a (não) aplicação ao processo do trabalho”.
Para fechar, uma rápida anedota: na sala de
audiência, questionado pelo advogado acerca da aplicação do novo CPC, o
magistrado respondeu: “se eu não acompanhei nem mesmo a reforma lá de casa,
imagina as mudanças promovidas o novo CPC. Aqui, eu não o aplico, doutor.
Portanto, não se preocupe”.
Da série “eu ignoro o CPP”
Essa semana foi destaque na ConJur a decisão do TJ-SP no sentido de que “a prisão provisória não pode durar mais que a pena imposta em condenação”. É isso mesmo. O tribunal teve de explicitar o óbvio!
Essa semana foi destaque na ConJur a decisão do TJ-SP no sentido de que “a prisão provisória não pode durar mais que a pena imposta em condenação”. É isso mesmo. O tribunal teve de explicitar o óbvio!
Vamos ao fato: o réu foi preso cautelarmente, em
junho de 2015, por tentar furtar bicicletas de um condomínio na comarca de
Guarulhos. Ao final da ação penal, em julho de 2016, restou condenado à pena um
ano de reclusão, sendo-lhe negado o direito de recorrer em liberdade. Precisou
que o TJSP, em sede de Habeas Corpus, determinasse sua soltura, sob o
fundamento de que a prisão provisória que ultrapassa a pena imposta configura
“inescondível ilegalidade”.
Será que o juiz singular desconhece o instituto da
detração? Ele está expresso no artigo 387, parágrafo 2º, do CPP: “O tempo de
prisão provisória, de prisão administrativa ou de internação, no Brasil ou no
estrangeiro, será computado para fins de determinação do regime inicial de pena
privativa de liberdade”. Sua aplicação não é facultada ao magistrado. Para
completar, quando constrangido pela defesa, o juiz preferiu ignorar a alegação,
afirmando que sua jurisdição já estava encerrada...
Ainda bem que o tribunal comprou essa e concedeu a
ordem. Não vamos nos esquecer, entretanto, que, recentemente, um desembargador
da mesma Corte decretou, ex officio – e nos autos de um habeas
corpus – a prisão cautelar do paciente que discutia a imposição de fiança.
Império da voluntas decidendi
Eis, aqui, mais uma vez, a interpretação concebida como ato de vontade, tal qual defendida por Kelsen. É ela que conforma esse positivismo jurisprudencialista — tão combatido por Lenio Streck, em especial numa das colunas mais lidas da história —, por meio do qual ocorre a substituição da lei (e da Constituição) pela jurisprudência, numa espécie de realismo tardio, à brasileira.
Eis, aqui, mais uma vez, a interpretação concebida como ato de vontade, tal qual defendida por Kelsen. É ela que conforma esse positivismo jurisprudencialista — tão combatido por Lenio Streck, em especial numa das colunas mais lidas da história —, por meio do qual ocorre a substituição da lei (e da Constituição) pela jurisprudência, numa espécie de realismo tardio, à brasileira.
Ao contrário daqueles que sustentam uma espécie de commonlização
do direito brasileiro – sob o argumento de que se criou um “sistema de
precedentes”, o que reforçaria ainda mais o positivismo jurisprudencialista
–, penso que o novo CPC institui parâmetros para o
controle das decisões judiciais e um conjunto de provimentos vinculantes, na
mesma linha de Abboud e Streck (artigo 927, Comentários ao Código de
Processo Civil, ed. Saraiva, 2016).
É por isso que não se deve apostar no protagonismo
dos juízes e tampouco na commonlização do sistema jurídico brasileiro.
Por quê? Porque se assim o fizermos, o direito será (se já não é) aquilo que os
juízes dizem que é, ou aquilo que os juízes dizem que ele não é. E, então,
cumprir ou não os dispositivos expressos no novo CPC (e no CPP) perderá
completamente a relevância.
André Karam Trindade é doutor em Direito,
professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional
(IMED/RS) e da Faculdade Guanambi (FG/BA), e advogado.
Revista Consultor
Jurídico, 30 de julho de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-jul-30/diario-classe-nao-preocupe-doutor-aqui-eu-nao-aplico-cpc#author
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