“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

Diário de Classe - "Não se preocupe, doutor, aqui eu não aplico o novo CPC"



Há muitos anos, logo após 1988, reclamava-se que os juízes não aplicavam a Constituição, mas apenas a lei ordinária. Até a metade da década de 1990, mais ou menos, era comum encontrar decisões em que se ignorava a tal “aplicabilidade imediata” das normas definidoras de direitos fundamentais, sob o argumento da inexistência de legislação regulamentadora.
Pois bem. Passados todos esses anos, ingressamos numa nova fase. Agora não se aplica nem mesmo a lei, sobretudo quando instituidora de alguma garantia fundamental. Proponho, então, a inauguração de duas séries (que poderiam ser exploradas pela ConJur). E a adoção de medidas por parte da OAB, evidentemente.
Da série “eu não aplico o NCPC!”
Quem frequenta os foros sabe serem poucos os juízes que estão designando audiência de conciliação ou de mediação, conforme determina o artigo 334 do novo Código de Processo Civil.
O mesmo está ocorrendo, sistematicamente, em tribunais de diversas unidades da federação — e também no STJ — quando o que está em jogo é o dever de fundamentar as decisões expresso no artigo 489, parágrafo 1º, do novo CPC, cuja aplicação vem sendo relativizada.

Outra situação já bem conhecida diz respeito à contagem dos prazos nos juizados especiais. Segundo a Nota Técnica 1/2016 do Fonaje (em seguida, certamente virá o enunciado), o artigo 219 do novo CPC, que trata da contagem de prazos processuais em dias úteis, não deve ser aplicado. E por quê? Ora, em razão da especialidade da Lei dos Juizados Especiais (que, na verdade, sequer dispõe sobre o modo como devem ser contados os prazos processuais).
Isso para não falar de um curso que vem sendo oferecido sobre o tema “Novo CPC e a (não) aplicação ao processo do trabalho”.
Para fechar, uma rápida anedota: na sala de audiência, questionado pelo advogado acerca da aplicação do novo CPC, o magistrado respondeu: “se eu não acompanhei nem mesmo a reforma lá de casa, imagina as mudanças promovidas o novo CPC. Aqui, eu não o aplico, doutor. Portanto, não se preocupe”.
Da série “eu ignoro o CPP”
Essa semana foi destaque na ConJur a decisão do TJ-SP no sentido de que “a prisão provisória não pode durar mais que a pena imposta em condenação”. É isso mesmo. O tribunal teve de explicitar o óbvio!
Vamos ao fato: o réu foi preso cautelarmente, em junho de 2015, por tentar furtar bicicletas de um condomínio na comarca de Guarulhos. Ao final da ação penal, em julho de 2016, restou condenado à pena um ano de reclusão, sendo-lhe negado o direito de recorrer em liberdade. Precisou que o TJSP, em sede de Habeas Corpus, determinasse sua soltura, sob o fundamento de que a prisão provisória que ultrapassa a pena imposta configura “inescondível ilegalidade”.
Será que o juiz singular desconhece o instituto da detração? Ele está expresso no artigo 387, parágrafo 2º, do CPP: “O tempo de prisão provisória, de prisão administrativa ou de internação, no Brasil ou no estrangeiro, será computado para fins de determinação do regime inicial de pena privativa de liberdade”. Sua aplicação não é facultada ao magistrado. Para completar, quando constrangido pela defesa, o juiz preferiu ignorar a alegação, afirmando que sua jurisdição já estava encerrada...
Ainda bem que o tribunal comprou essa e concedeu a ordem. Não vamos nos esquecer, entretanto, que, recentemente, um desembargador da mesma Corte decretou, ex officio ­­– e nos autos de um habeas corpus – a prisão cautelar do paciente que discutia a imposição de fiança.
Império da voluntas decidendi
Eis, aqui, mais uma vez, a interpretação concebida como ato de vontade, tal qual defendida por Kelsen. É ela que conforma esse positivismo jurisprudencialista — tão combatido por Lenio Streck, em especial numa das colunas mais lidas da história —, por meio do qual ocorre a substituição da lei (e da Constituição) pela jurisprudência, numa espécie de realismo tardio, à brasileira.
Ao contrário daqueles que sustentam uma espécie de commonlização do direito brasileiro – sob o argumento de que se criou um “sistema de precedentes”, o que reforçaria ainda mais o positivismo jurisprudencialista –, penso que o novo CPC institui parâmetros para o controle das decisões judiciais e um conjunto de provimentos vinculantes, na mesma linha de Abboud e Streck (artigo 927, Comentários ao Código de Processo Civil, ed. Saraiva, 2016).
É por isso que não se deve apostar no protagonismo dos juízes e tampouco na commonlização do sistema jurídico brasileiro. Por quê? Porque se assim o fizermos, o direito será (se já não é) aquilo que os juízes dizem que é, ou aquilo que os juízes dizem que ele não é. E, então, cumprir ou não os dispositivos expressos no novo CPC (e no CPP) perderá completamente a relevância.
André Karam Trindade é doutor em Direito, professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade Meridional (IMED/RS) e da Faculdade Guanambi (FG/BA), e advogado.
Revista Consultor Jurídico, 30 de julho de 2016, 8h00
http://www.conjur.com.br/2016-jul-30/diario-classe-nao-preocupe-doutor-aqui-eu-nao-aplico-cpc#author

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