TRIBUNA DA DEFENSORIA - Defensor público não pode substituir advogado ausente em audiência
Questão tormentosa e rotineira para o defensor público que labuta
perante as varas criminais são os incessantes pedidos formulados pelo Juízo
para que realize e acompanhe uma audiência, na qual, em que pese existente
advogado constituído, esse não comparece, mas também não justifica a sua
ausência, e, tampouco, há notícia de renúncia nos autos.
Duas situações ainda daí podem surgir: o defensor público acompanha
apenas aquele ato ou, diante o princípio da concentração, adotado pela reforma
de 2008 no Código de Processo Penal (CPP), no caso dos procedimentos, acompanha
a audiência de instrução e julgamento, com a tomada dos depoimentos das
testemunhas e interrogatório do acusado, inclusive.
A inviabilidade e a impossibilidade de tal atuação encontram diversas
razões. Sabe-se que na garantia humana e constitucional da ampla defesa
encontra-se embutido o direito de o acusado escolher quem realmente exercitará
o seu direito de defesa, não sendo obrigado a optar por defesa patrocinada pela
Defensoria Pública, mas por defensor de sua livre escolha e confiança.
Sendo assim, constituído defensor pelo acusado, ainda que não
comparecente para o ato processual designado, inviável o pleito para que o
defensor público lhe substitua. É certo que o artigo 265 do CPP, introduzido
também pelas reformas pontuais de 2008, aduz para o fato de que o defensor não
poderá abandonar o processo, salvo por motivo imperioso, comunicado previamente
ao juiz, sob pena de multa e demais sanções cabíveis. Os parágrafos do referido
dispositivo legal dão conta da possibilidade de o defensor requerer pelo
adiamento da audiência caso não possa comparecer, o que autoriza a legislação,
se existente motivo justificado. Por outro lado, informa o mesmo dispositivo
legal que se não provar o impedimento o defensor até a abertura da audiência, o
juiz não adiará o ato e nomeará defensor substituto.
Ocorre que esse defensor substituto não se poderá dar na pessoa do
defensor público, aliás, ainda que de 2008 a legislação referida, insta
salientar que destoa a mesma do plano constitucional, na medida em que viola a
ampla defesa, permitindo que ainda que seja apenas para um determinado ato
processual, defensor outro que não o constituído pelo acusado exerça a sua
defesa, sem que para tanto tenha acesso aos autos com tempo hábil a formulação
de defesa efetiva.
Penso que a questão se insere na dificuldade de compreensão e de
reconhecimento da Defensoria Pública enquanto instituição permanente e autônoma
que é; essencial à função jurisdicional do Estado, que tem por incumbência,
como expressão e instrumento de efetivação do regime democrático, a orientação
jurídica, a promoção dos direitos humanos, e a defesa, em todos os graus,
judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma
gratuita e integral, vejam bem, aos necessitados, assim considerados na forma
do artigo 5º, inciso LXXIV, da CF. Tal é a redação do artigo 1º da LC
80/94, redação conforme a LC 132/2009 e reformas constitucionais.
A prestação dessa orientação e defesa é integral, portanto, não parcial
ou precária, como na hipótese, descumprindo a nomeação da Defensoria Pública
pelo juízo como substituta de um defensor particular. Aqui, Caio Paiva já
trabalhou muito bem em outra coluna, da impossibilidade de atuação conjunta do
defensor público com o constituído, mormente, e, na medida em que seus
objetivos e funções encontram ancoragem constitucional, cumprindo-lhe por
instituição autônoma que é a aferição da sua atuação legítima e legal.
Tal situação nos parece inclusive ensejar locupletamento ilícito por
parte de particular em detrimento do Estado, já que a Defensoria é instituição
pública, cuja manutenção orçamentária se dá por recursos públicos, por
certo. E nem se fale na possibilidade de fixação de honorários em favor da
Defensoria Pública nesse caso, pois quem arcará com o pagamento destes: o
defensor ausente? O acusado?
Ainda que assim não o fosse, o fato é que é objetivo da Defensoria
Pública, nos termos da LC 80/94, em seu artigo 3º-A, a afirmação do Estado
Democrático de Direito, a prevalência e a efetividade dos direitos humanos e a
garantia dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, a
qual restaria evidentemente prejudicada, pois flagrante a necessidade de tempo
e estudo do processo para se preparar uma defesa devidamente efetiva.
O artigo 8.2, ‘c’, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
traz como garantia judicial o direito humano de o acusado contar com tempo e
meios necessários à preparação da sua defesa. Veja, qual é mesmo um dos
objetivos da Defensoria Pública, antes referido? Dar prevalência e efetividade
aos direitos humanos. Estaremos fazendo isso com essa atuação? Penso que
sequer a fixação de honorários supre essa ilegalidade.
Além disso, a razão de ser da
Defensoria Pública não é a de tapar furos, data vênia. A ordem constitucional
de 1988, enquanto cláusula pétrea confere à Defensoria Pública a prestação de
assistência jurídica a pessoas em situação de vulnerabilidade, e, de acordo com
Kettermann, “sendo o modelo adotado pelo Brasil o público, só haverá efetivo
respeito ao comando constitucional quando o serviço for prestado por esta
Instituição, que deve estar organizada na forma preconizada pela Lei
Complementar 80/94. Esta Lei, fundamental para o pleno exercício de direitos
pelas pessoas necessitadas, representou verdadeiro divisor de águas na história
da Defensoria Pública nacional, porque desenhou com mais concretude o que,
afinal, era a Defensoria Pública, e estabeleceu um Norte estrategicamente
pensado para fazer dela o que pretendia não só o legislador constitucional
originário, mas sobretudo o povo multivulnerável do nosso país.” [1]
Não por menos, Rocha ao discorrer
sobre os princípios institucionais da Defensoria Pública: a unidade,
indivisibilidade e a independência funcional; será enfática ao afirmar: “o
membro da Defensoria Pública enquanto órgão de execução da instituição una não
pode agir individualmente ao alvedrio da instituição, ele não é advogado, não
age em seu próprio nome, é órgão de execução da Defensoria e deve obediência a
seus princípios, funções e objetivos institucionais.” Salienta mais adiante,
inclusive, que não pode o agente invocar sequer a independência funcional como
razão para afastamento dos princípios, objetivos e funções institucionais, “já
que, repita-se, a identidade não é pessoal, é institucional.” E essas funções
institucionais, de acordo com a autora, “são os meios e caminhos possíveis e
necessários para a concretização do acesso ao que é justo pelas pessoas em
condição de vulnerabilidade.” [2]
Por outro lado, sabe-se que a defesa técnica é indispensável no processo
penal, sob pena de nulidade, vide nesse sentido a Súmula 523 do STF e diversos
artigos ao longo do próprio código. Dessa forma, como proceder a uma defesa
efetiva acaso desconhecida a estratégia do defensor constituído, ou melhor, sem
análise prévia do processado? Aliás, aos pefensores públicos é assegurada a
prerrogativa de prévia intimação pessoal com acesso aos autos! E isso tudo,
quanto mais, quando única audiência de instrução, com formação da prova diante
o Juiz competente para julgamento do caso penal!
Aliás, o que talvez esteja por detrás disso tudo, mais do que o não
reconhecimento da Defensoria Pública enquanto instituição que o é, ou o desconhecimento
das suas reais funções e objetivos, é o desprezo pela defesa, em verdadeira
afronta a paridade de armas. A mentalidade inquisitória é a que permeia as
cabeças, seja dos componentes do sistema de justiça criminal, sejam da
sociedade como um todo.
Não por menos sabemos que o modelo
inquisitório está alicerçado na figura do chamado Juiz Inquisidor, cuja
centralização de papéis em uma única pessoa, alcança, inclusive, a gestão quase
que autônoma da prova. Nesse sentido, Carvalho expõe: “Em sua forma
jurídico-penal, o sistema inquisitório se estrutura em economia de poder cujo
protagonismo é exercido pelo magistrado. A relação que se estabelece entre
julgador e julgado é estruturante, pois traça os limites de atuação dos
sujeitos processuais. Aliás, todos os demais atores desta cena processual são
coadjuvantes, detentores de papéis secundários, pois a resolução do caso se
vincula fundamentalmente à técnica do magistrado em descobrir a verdade que o
acusado é o exclusivo detentor. O poder, portanto, é altamente concentrado e
direcionado exclusivamente contra o suspeito-acusado-réu.” [3]
Conforme já referi em outra
oportunidade,[4]
de acordo com Souza, o próprio enfoque do acesso à justiça deve ser modificado
quando transportado para o Direito Penal e Processual Penal. Para além do
acesso igualitário aos tribunais, independentemente da situação econômica das
partes, no que tange a Defensoria Pública, deve se ultrapassar a visão de um
serviço público eficiente e acessível a toda população, na medida em que, na
seara do direito criminal, salvo exceções, os cidadãos pobres não pedem uma
prestação jurisdicional, não acionam o Poder Judiciário, contrariamente, são
acionados por este Poder, figurando ordinariamente no polo passivo da pretensão
acusatória.
Dessa forma, aponta Souza,[5]
acompanhando a realidade atual do processo penal no Brasil, que não é a de
resolução alternativa dos conflitos, mas, sim, de utilização maciça do direito
penal e dos procedimentos criminais como forma de controle social, há
necessidade de o acesso à justiça nessa esfera alcançar o seu aspecto mais
substancial e importante que é o acesso a uma ordem jurídica justa, a uma
decisão judicial livre, imparcial e desinteressada e criteriosa, com atenção ao
asseguramento de todos os direitos e garantias fundamentais ao imputado.
Nesse ponto, penso, portanto, que cumpre a todos os defensores públicos
a negativa de realização de qualquer ato processual em processo onde figura
advogado constituído, nesses termos antes referidos, pois tal atuação viola os
princípios institucionais, as funções e objetivos da própria Defensoria
Pública, além de prejudicar sobremaneira a defesa do acusado.
Essa é uma luta constante de todos os defensores e defensoras públicas
do país, de mais do que afirmação e reconhecimento da instituição, enquanto
instituição de Estado, de defesa intransigente dos direitos humanos
fundamentais, ainda que isso custe um alto preço a pagar na labuta diária, e
sei que os defensores e defensoras entenderão o que digo, mas penso que essa é
a maior diferença e nobreza do ato de defensorar: a incessante e muitas vezes
incansável luta por direitos!
1 KETTERMANN, Patrícia.
Defensoria Pública. Coleção Para entender direito. 1ª ed. São Paulo: Estúdio
Editores.com, 2015.
2 ROCHA, Amélia Soares da.
Defensoria Pública. Fundamentos, Organização e Funcionamento. São Paulo: Atlas,
2013.
3 CARVALHO, Salo de. O
Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010.
4 CAPPELLARI, Mariana Py Muniz.
Os Direitos Humanos na Execução Penal e o Papel da Organização dos Estados
Americanos (OEA). Presídio Central de Porto Alegre, Masmorra do Século XXI.
Porto Alegre: Núria Fabris, 2014.
5 Conforme aponta Fábio Luís
Mariani de Souza in A Defensoria Pública e o Acesso à Justiça Penal (2011, p.
292): “(...) o acesso à justiça penal significa também, acesso a uma ordem
jurídico-penal justa, ou seja, direito ao devido processo legal; direito a ser
tratado como sujeito e não mero objeto da persecução penal; direito a ser
tratado como inocente; direito à informação acerca da acusação e sobre todos os
atos e formas processuais; direito a não auto-incriminação; direito ao
contraditório e a ampla defesa; direito à Defensoria Pública devidamente
estruturada; direito à assistência jurídica gratuita; direito de entrevistar-se
reservadamente com o seu advogado (público ou privado); direito ao duplo grau
de jurisdição; direito à preservação da imagem; direito de igualdade formal e
material (paridade de armas); direito de respeito à dignidade humana; etc.
Enfim: o acesso à Justiça penal, como demonstramos, se equivale ao direito a
uma defesa criminal materialmente eficaz, e mais ainda, significa dar eficácia
aos direitos fundamentais componentes do núcleo mínimo existencial na seara do
direito penal e processual penal (...)”
http://www.conjur.com.br/2016-abr-12/tribuna-defensoria-defensor-publico-nao-substituir-advogado-ausente-audiencia
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