“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

AUTONOMIA DO DIREITO - Lenio Streck e Dierle Nunes analisam mudanças trazidas pelo novo CPC


Dierle Nunes e Lenio Streck, autores de livro sobre novo CPC, respondem a
11 perguntas sobre norma.

Reprodução
O sistemas de precedentes do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015) não é nenhum remédio milagroso que resolverá os problemas do Judiciário. Quem alerta são os advogados Lenio Streck e Dierle Nunes, que colaboraram com a criação do novo código que entrou em vigor na última sexta-feira (18/3).
Nunes foi um dos membros da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do novo CPC na Câmara dos Deputados. Streck um "crítico do Direito em terrae brasilis", que desde o início das discussões não poupou sugestões para melhorar o projeto, até mesmo depois de aprovado.
Juntos, contabilizam uma vitória: a retirada do poder do livre convencimento do novo CPC. "Em tempos de democracia, não é adequado que se permita o livre convencimento nas decisões", afirmam.

Porém, apesar dos avanços do código, ambos atentam que é necessária uma mudança de racionalidade, de como é visto o Direito e sua teorização. "Uma Constituição democrática exige que a cumpramos. O Direito, hoje, tem um elevado grau de autonomia. Portanto, depende menos do agir individual dos juízes. Se quisermos resumir isso em uma frase, podemos dizer: na dúvida, julgue conforme o Direito, seguindo a legislação. Se persistirem os sintomas, a Constituição deverá ser consultada", afirmam.
Streck e Nunes são autores do livro Comentários ao Código de Processo Civil, recém-lançado, em parceria com Leornardo Cunha e Alexandre Freire (clique aquipara mais informações sobre a publicação).
Abaixo, a dupla responde a 11 questões sobre o novo CPC:
ConJur — Qual a relevância da adoção de normas fundamentais pelo novo CPC?
Nunes e Streck — A Lei 13.015/2015, seguindo uma linha reformista utilizada em inúmeros outros países (como na CPR Inglesa de 1998 — Reforma Woolf), adota um conjunto de normas concentradas em seu início (primeiros 11 dispositivos) e em seu bojo (como por exemplo os artigos 489 e 926) que ofertam os principais fundamentos da nova legislação para superação de um modelo de protagonismo judicial e decorrente adoção de um modelo democrático e policêntrico de sistema processual no qual se dimensiona uma divisão equânime entre o papel da magistratura e da advocacia e, ao mesmo tempo, induz comportamentos normativamente coparticipativos.
Ademais, as referidas normas fundamentais promovem a aproximação da legislação com o texto constitucional de modo a se corrigir uma série de vícios da praxe brasileira, induzindo, por exemplo a adoção de modelos decisórios mais dialógicos e maior responsabilidade aos advogados pelos riscos econômicos de uma propositura equivocada de uma demanda (por exemplo artigos 85, 338, parágrafo único).
ConJur — Não seria suficiente, neste aspecto, somente aplicar as normas constitucionais processuais?
Nunes e Streck — Infelizmente, cremos que não! É óbvio que boa parcela das normas fundamentais buscam somente a expansividade do que está na Constituição e, caso fossem aplicadas com toda a sua força, tornariam desnecessário a repetição ou descrição de seu conteúdo pelo CPC-2015. Porém, como sabemos e vimos denunciando há muito tempo, várias normas postas na Constituição são olimpicamente desprezadas por muitos profissionais e torna-se deveras importante seu reforço pela legislação.
Um exemplo notório neste aspecto diz respeito à fundamentação decisória. Apesar da CF/88 prever a nulidade pela inaplicação de seu comando (artigo 93, IX) é recorrente o uso de fundamentações superficiais e despreendidas do caso em julgamento, sem esquecer do desprezo ao dever de consideração com os argumentos relevantes suscitados pelas partes. Em face deste vício, a legislação se viu compelida a contrafaticamente corrigir este comportamento não cooperativos dos julgadores.
ConJur — Se tornou lugar comum a alusão ao novo sistema de precedentes que o CPC-2015 estabeleceu. Vocês acreditam que ele será a solução definitiva ao problema de alta litigiosidade do direito brasileiro?
Nunes e Streck — De imediato precisamos advertir a todos de que o sistema de precedentes do CPC não é nenhum remédio milagroso que resolverá nossos problemas. Possuímos uma litigiosidade plural e com números assustadores, que jamais será resolvida somente com reformas legislativas; por melhores que as mesmas sejam.
Para reduzir as litigiosidade deveríamos atacá-las em sua gênese, por exemplo, com a redução do descumprimento dos direitos (inclusive fundamentais) pelos grandes litigantes brasileiros — repeat players — (como o poder público, bancos, telefônicas etc.) mediante um aumento da fiscalidade (accountability) e da promoção de efetivos diálogos institucionais. Eles usam o judiciário para resolver seus problemas. Lembramos aqui de uma frase do ministro Luis Salomão do Superior Tribunal de Justiça: as companhias telefônicas transferiram seu call centerpara o Judiciário. Bingo! Nada mais precisa ser dito.
Porém, o que se busca com o sistema de precedentes do caso é o de oferecer uma nova racionalidade para o trabalho dos tribunais. A palavra chave é: previsibilidade. A superficialidade dos julgamentos e a anarquia interpretativa são apenas alguns dos problemas do trato do direito jurisprudencial entre nós. E, em face disto, o CPC-2015 cria um modelo altamente dialógico de formação destas decisões e impõe o respeito à estabilidade, coerência e integridade...
ConJur — Quais cuidados os profissionais devem possuir neste momento de transição?
Nunes e Streck — Além dos efetivos problemas de adaptação com novo sistema e novas técnicas e as questões envolvendo o direito intertemporal, é imperativo o aumento do cuidado com as partes onde tivemos maiores modificações, como o tutela provisória e o sistema recursal.
Os advogados terão que ter muito cuidado para não exporem seus clientes a um desastre judicial. Se existe precedente confiável contra a tese do cliente, o causídico deve ter extrema cautela. A possibilidade de perder deve ser comunicada ao cliente. Até pensamos que, nestes casos, deve isto estar estabelecido no contrato, para evitar demandas contra o advogado.
ConJur — Poderiam exemplificar algumas das novidades no sistema recursal?
Nunes e Streck — Além da adoção do mesmo prazo para todos os recursos (15 dias contados em dias úteis — artigo 219), com a exceção do recurso de embargos de declaração (artigo 1.003, §5º), há uma mudança brutal do cabimento dos recursos de agravo (artigo 1.015) e apelação (artigo 1.009), sem olvidar da adoção de um modelo único para os recursos extraordinários repetitivos (artigos 1.036 a 1.041), com previsão expressa de técnicas de distinção (artigos 1,037, §§9º a 13) e superação de precedentes (artigo 927, §§ 2º a 4º).
O modelo casuístico de cabimento do agravo, com o uso da apelação de modo supletivo para as hipóteses de interlocutórias não previstas no rol legal (artigo 1015) traz um complicador para os habituados ao sistema do CPC-1973.
Um alento é a adoção da chamada primazia do mérito (artigos 4º e 932, paragrafo único) que combate a jurisprudência defensiva e impõe ao relator a abertura de prazo para a correção de vícios formais dos recursos, antes de declarar sua inadmissibilidade, como nas situações de falta de preparo (artigo 1007) ou de documentos do instrumento de agravo (artigo 1.017, §3º)
ConJur — Quais os principais artigos do CPC que tratam daquilo que os senhores chamam de “previsibilidade”?
Nunes e Streck — Além do artigo 10, chave de interpretação sistêmica do CPC, há o artigo 926, que, de forma inédita, coloca a exigência de coerência e integridade no CPC. Isto, lido de acordo com o artigo 10, talvez seja o maior trunfo em favor da previsibilidade e segurança dos jurisdicionados. Já o artigo 489 estabelece uma verdadeira criteriologia decisional. Bem claro, o dispositivo diz em que hipóteses uma decisão, incluindo acórdãos, não estarão fundamentados devidamente. Aliás, este é o artigo que está causando uma maior resistência no seio da magistratura. Em alguns ramos da justiça como a do Trabalho, até enunciados já foram aprovados “decidindo” que, pasmem, este artigo não se aplica a eles. Ou seja, estão acima da lei. Não nos parece que isso seja um bom exemplo em um país com tantos problemas. Cumprir a lei é a primeira obrigação dos agentes públicos.
ConJur — Vocês lutaram para a retirada do poder de livre convencimento do Código. Como foi isso? E qual é a importância?
Nunes e Streck — Lenio escreveu um artigo na ConJur criticando duramente o projeto. O deputado Paulo Teixeira lhe chamou para discutir sugestões. Lenio ligou para Dierle, que já trabalhava na Comissão de Juristas da Câmara dos Deputados. Discutiram teses e temas. O resultado direto pode ser visto nos artigos 371, 926 e 927, sendo que, direta e indiretamente, buscamos auxiliar no aprimoramento de dispositivos como o 10, 489 e 926. Mas uma grande luta travamos para evitar o veto a dispositivos importantes como o §1º do artigo 489. Fizemos dois artigos na ConJur para pedir que a presidente sancionasse. Mesmo após a sanção também buscamos diretamente com parlamentares e com a publicação de textos aqui coibir retrocessos impostos pela Lei 13.256/2016. Um registro: a ConJur foi de extrema relevância para a nossa luta. Sem o site, teria sido muito difícil consolidar alguns avanços. Somos muito agradecidos à ConJur.
ConJur — Mas, especifiquem melhor a alteração no livre convencimento.
Nunes e Streck — O livre convencimento é uma marca colocada nos Códigos. Essa marca aponta para o passado. No século XIX e início do século XX isso até se justificava. Em tempos de democracia, não é adequado que se permita o livre convencimento nas decisões. E não adianta dizer que o livre convencimento é motivado. Sem sentido. Se tenho liberdade para escolher, a motivação que vem depois é só para colocar um verniz naquilo que decidi. Muitas vezes o juiz já se encontra enviesado e com uma tendência de confirmar seu pré-julgamento, isto é, o seu “adiantamento de sentido” do caso (confirmation bias). Aceitar o livre convencimento é aceitar a tese de que a interpretação é um ato de vontade. E disso sabemos todos as consequências.
E isso enfraquece o processo. O processo é condição de possibilidade da aplicação do Direito. Ele não é um mero instrumento. Por isso, as decisões não podem ser teleológicas ou finalísticas. A decisão deve ser produto dialogal, com a participação dos atores e não um produto que vem da mente insulada do juiz. Alguém poderia dizer: “sim, mas não adianta proibir. Quando o juiz quer, ele decide como quer”. Nossa resposta: pode até ser assim. Mas essa é uma visão que enfraquece o Direito e o processo. Isso é o mesmo que dizer que o Direito é aquilo que os juízes dizem que é. Se isso é mesmo verdade, devemos parar de escrever, de estudar, de lecionar ou cursar pós-graduação. No fundo, se isso é verdade, nem votar será necessário. Se o direito é o que os juízes dizem que é, nem mais direito — no sentido democrático — existirá. Porque só existirá aquilo que se diz que é direito. E tudo se resumirá em um jogo de poder. Somos otimistas: achamos que há esperança. Os artigos 10, 371, 489, 926 e 927, bem aplicados, podem constituir em um grande avanço.
ConJur — Trata-se, então, de uma questão cultural?
Nunes e Streck — E de mudança de racionalidades. Temos que mudar o modo como vemos o Direito e a sua teorização. Uma Constituição democrática exige que a cumpramos. O Direito, hoje, tem um elevado grau de autonomia. Portanto, depende menos do agir individual dos juízes. Se quisermos resumir isso em uma frase, podemos dizer: na dúvida, julgue conforme o direito, seguindo a legislação. Se persistirem os sintomas, a Constituição deverá ser consultada.
ConJur — E a ponderação que está no artigo 489?
Nunes e Streck — Aqui reside um problema: tudo indica que os juristas que participaram da Comissão de elaboração do CPC quiseram estabelecer a ponderação de origem alexiana. Ocorre que o dispositivo foi aprovado com um grave defeito, ao falar em “colisão de normas”. Ora, se regras também são normas — e, efetivamente, o são — isso quer dizer que o juiz poderá “ponderar” regras? Mas, se assim proceder, estará escolhendo uma regra em detrimento de outra. Afinal, não é Alexy quem diz que regra é no tudo ou nada? Logo, estará invalidando uma delas. Só que, então, estará violando a jurisdição constitucional e criando Direito, o que lhe é vedado a toda evidência. Portanto, o dispositivo que autoriza o juiz a ponderar normas (e regras são normas) é inconstitucional, porque fere o artigo 2º da Constituição Federal, que estabelece a divisão de Poderes na República. Além do mais, o próprio Robert Alexy se refere à colisão de princípios e não colisão de regras, criação, aliás, tipicamente brasileira.
ConJur — Uma mensagem final?
Nunes e Streck — Conclamamos a comunidade jurídica a acreditar no Direito. Olhemos o novo com os olhos do novo. Quem olha o novo com os olhos do velho, transforma o novo no velho. Crise é quando o novo não nasce e o velho não morre. Temos que olhar para a frente. Superar crise. Acreditar que o Direito não é manipulável como se fosse um jogo em que as cartas são marcadas. Por isso lutamos tanto, junto com tantos outros juristas, para aprovarmos este Código. E estamos prontos para a batalha do novo Código de Processo Penal. A raiz dos problemas é a mesma. Mas isso já é pauta para outro momento.

http://www.conjur.com.br/2016-mar-25/lenio-streck-dierle-nunes-analisam-mudancas-trazidas-cpc

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