PRISÃO PROCESSUAL - Em parecer, banca inglesa diz que condução da "lava jato" afronta Estado de Direito
28 de janeiro de 2016, 17h30
O uso generalizado de prisões anteriores a um julgamento afronta os
princípios mais básicos do Estado Democrático de Direito. Por isso, a forma com
que a operação “lava jato” vem sendo conduzida pela Justiça Federal “levanta
sérios problemas relacionados ao uso de prisões processuais, o direito ao
silêncio e à presunção de inocência”.
A conclusão é de um parecer escrito
por advogados da banca britânica Blackstone Chambers, sob encomenda dos
escritórios que patrocinam a defesa dos executivos da Odebrecht na “lava jato”.
Eles foram chamados a analisar as prisões processuais “no contexto da ‘lava
jato’ [ou Car Wash, como traduziram]” e confrontá-las com os
tratados internacionais e com as tradições do Direito Comparado. Para os
advogados ingleses, a condução da operação tem violado os princípios da
presunção de inocência e o direito a um “julgamento justo em prazo razoável”.
Entre os problemas que encontraram na
condução da “lava jato”, apontam o “uso impróprio da intenção criminosa para
demonstrar a gravidade dos crimes investigados”; “assertivas genéricas para
basear o risco de novo cometimento de crimes para justificar a prisão”; “a
referência a acordos de delação [plea bargains, em inglês] como
justificativa para detenções”; “demora na concessão de Habeas Corpus, muito por
causa de múltiplas e sequenciais ordens de prisão”; e a “cobertura adversa e
desregulamentada das investigações pela imprensa”.
Cabe uma explicação: a Blackstone não
é um escritório nos moldes brasileiros. No Reino Unido, a advocacia se divide
em duas carreiras, ossolicitors e os barristers. Solicitors são
os que representam os clientes em juízo.
Barristers são os
profissionais responsáveis pelas sustentações orais, elaboração de pareceres e
redação de petições e peças processuais mais importantes. Eles não se organizam
em bancas de advocacia hierarquizadas, mas se juntam de maneira independente
sob um mesmo “chapéu”, que chamam de chamber. A Blackstone é uma
dessas organizações debarristers (clique aqui para ler mais
sobre o assunto).
De volta à “lava jato”, segundo balanço do Ministério Público Federal,
até 18 de dezembro do ano passado, 119 mandados de prisão foram expedidos, dos
quais 62 foram de prisões preventivas, e 57, de temporárias. Outro balanço,
também do MPF, diz que são 140 os denunciados e 119 os que tiveram a denúncia
aceita pela Justiça, tornando-se réus. Outros 80 já foram condenados.
“Nessas circunstâncias, há
preocupações reais de que houve falha na adequação do significado fundamental e
histórico do direito à liberdade e à natureza expedita do remédio que
representa o Habeas Corpus”, conclui o parecer da Blackstone. O texto é
assinado pelos barristers Timothy Otty, Sir Jeffrey Jowell e
Naina Patel.
Padrões internacionais
O parecer da Blackstone cita relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o uso de prisões preventivas na América do Sul e na América Central, publicado em 2013, referente a dados coletados em junho de 2012. Proporcionalmente, o Brasil é o segundo país com mais prisões preventivas da região, com 191 mil pessoas encarceradas sem julgamento, ou 38% do total, até junho de 2012.
O parecer da Blackstone cita relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o uso de prisões preventivas na América do Sul e na América Central, publicado em 2013, referente a dados coletados em junho de 2012. Proporcionalmente, o Brasil é o segundo país com mais prisões preventivas da região, com 191 mil pessoas encarceradas sem julgamento, ou 38% do total, até junho de 2012.
Para os barristers ingleses,
os dados mostram que vários padrões internacionais de direitos humanos,
inclusive tratados dos quais o Brasil é signatário, são desrespeitados. São
eles:
Presunção de inocência: “Talvez a
mais básica de todas as garantias judiciais do processo penal”. “Na prática, o
respeito ao direito à presunção de inocência implica, como regra geral, que o
acusado deve ficar em liberdade durante os procedimentos criminais”, diz o
parecer, repetindo o estudo da CIDH.
Ônus da Prova: significa, de
acordo com a tradição histórica do Habeas Corpus nos países da tradição do
Direito dos Costumes (principalmente Reino Unido e Estados Unidos), dizer que
cabe ao Estado justificar as razões pelas quais alguém deve responder a um
processo.
Princípio da excepcionalidade: a prisão
antes do julgamento só deve ser usada apenas como “último recurso em situações
específicas” nas quais estejam comprovações de que “medidas menos restritivas
seriam ineficazes em garantir os objetivos do processo”. De todo modo, diz o
parecer, as prisões processuais devem ser “o mais excepcionais e curtas
possível”.
Razões legítimas para prisão: “É obrigação
do Estado não restringir a liberdade de um acusado além dos limites
estritamente necessários para garantir que ele não impeça o desenvolvimento
eficiente de uma investigação”, dizem os barristers, mais uma vez
citando o estudo da CIDH.
O parecer da Blackstone ainda acrescenta que características pessoais
dos investigados e acusados não podem servir de motivo para a prisão
preventiva. “O significado é óbvio”, diz o texto. Isso quer dizer, para os
advogados, não se pode justificar uma prisão com base no argumento de que o réu
é rico ou que é acusado de crimes graves, como corrupção. “Algo mais concreto,
como o risco de fuga ou de intervenção nas investigações, é necessário.”
Lá fora
O parecer da Blackstone foi usado como base para uma reportagem da revista britânica The Economist intitulada Justiça estranha [Weird Justice, no original]. A conclusão do texto é que, enquanto suspeitos e acusados são presos antes do julgamento, os condenados recebem penas brandas, como a prisão domiciliar ou a obrigação de comparecer em juízo uma vez por mês.
O parecer da Blackstone foi usado como base para uma reportagem da revista britânica The Economist intitulada Justiça estranha [Weird Justice, no original]. A conclusão do texto é que, enquanto suspeitos e acusados são presos antes do julgamento, os condenados recebem penas brandas, como a prisão domiciliar ou a obrigação de comparecer em juízo uma vez por mês.
A Economist relata
as críticas feitas à “postura carismática” do juiz Sergio Moro, que conduz a
“lava jato” em Curitiba, e critica a prisão de mais de 600 mil pessoas, 40% das
quais ainda não foram condenadas. Diz, porém, que os motivos são “menos óbvios”
do que os discutidos na “lava jato”: o problema é que, no Brasil, afirma a
revista, um único juiz pode mandar alguém para a cadeia sem a anuência de um
júri popular.
Publicidade ostensiva
O procurador da República Vladimir Aras não gostou da reportagem daEconomist. Para ele, trata-se de trial by media, a versão em inglês de um conceito chamado “publicidade ostensiva”, conforme escreveu em seu perfil no Facebook. Aras é o coordenador de cooperação internacional da Procuradoria-Geral da República.
O procurador da República Vladimir Aras não gostou da reportagem daEconomist. Para ele, trata-se de trial by media, a versão em inglês de um conceito chamado “publicidade ostensiva”, conforme escreveu em seu perfil no Facebook. Aras é o coordenador de cooperação internacional da Procuradoria-Geral da República.
Na versão brasileira, publicidade ostensiva é uma estratégia de acusação
identificada com o Ministério Público e, principalmente, com a Polícia Federal:
diante da deflagração de uma operação policial, ou do início de um processo
penal considerado importante, informações relacionadas aos casos, como trechos
de depoimentos ou recortes de documentos, são enviados à imprensa para
divulgação.
Entre jornalistas, isso é considerado uma estratégia para “criar um
clima” em torno do caso. Como a imprensa, por natureza, é muito mais rápida que
o Judiciário, quando o caso finalmente vai a julgamento, certa opinião geral e
generalizada a respeito do caso já está formada — e pressionar o juiz em uma ou
outra direção fica mais fácil.
O advogado Nabor Bulhões, que hoje defende Marcelo Odebrecht, já
sustentou a tese quando foi assistente da acusação do delegado da PF
Protógenes Queiroz por desvio de função e corrupção. Protógenes foi um dos
responsáveis pela operação satiagraha. Para Nabor, o delegado usou de sua
posição para vazar informações, muitas vezes falsas, a respeito das investigações
e criar uma imagem negativa de Daniel Dantas, um dos investigados.
Publicidade ostensiva da defesa
Aras, em sua postagem no Facebook, considera que a contratação do parecer da Blackstone também é publicidade ostensiva, mas praticada pelos advogados da Odebrecht. “Embora ainda não seja comum entre nós, essa estratégia também pode servir de instrumento da defesa para sutilmente sugerir temas e visões a serem considerados pelos tribunais, por ocasião de julgamentos importantes”, escreveu, no dia 11 de dezembro.
Aras, em sua postagem no Facebook, considera que a contratação do parecer da Blackstone também é publicidade ostensiva, mas praticada pelos advogados da Odebrecht. “Embora ainda não seja comum entre nós, essa estratégia também pode servir de instrumento da defesa para sutilmente sugerir temas e visões a serem considerados pelos tribunais, por ocasião de julgamentos importantes”, escreveu, no dia 11 de dezembro.
Ele diz que o trial by media foi
usado pela empresa de auditoria Arthur Andersen quando a responsabilidade dela
no caso Enron foi julgada, em 2002. A companhia foi condenada, mas um recurso
dela está pendente de análise pela Suprema Corte dos Estados Unidos.
“A companhia Odebrecht tem usado essa mesma estratégia no caso ‘lava
jato’”, diz Aras, no Facebook. “Ao optar legitimamente por não colaborar com as
investigações do MPF e da PF — diferentemente da Camargo Corrêa, da Setal Óleo
e Gás e da Andrade Gutierrez —, a Odebrecht vem simultaneamente defendendo seu
caso na mídia, por meio de publicidade em grandes jornais, notas públicas,
campanhas em redes sociais e outras estratégias de marketing.”
O procurador reclama do fato de a Economist entrevistar
o advogado Augusto de Arruda Botelho, presidente do Instituto de Defesa do
Direito de Defesa (IDDD), “um dos advogados que atuam na defesa de Marcelo
Odebrecht na ‘lava jato’”. “Isso é trial by media em prol da
defesa, prática válida numa democracia como a nossa, mas que precisa ser
explicitada para que todos saibam como se movimentam as grandes bancas nos
maiores casos de criminalidade econômica e financeira.”
Cobertura ostensiva
O próprio parecer da Blackstone traz a discussão, ainda que de maneira incipiente. Segundo o texto, alguns fatores preocupam os autores. “A presunção de inocência pode ser violada tanto pela conduta de um tribunal quanto por comentários negativos a respeito de um réu feitos por agentes públicos para indicar uma visão concluída da culpa”, dizem os barristers.
O próprio parecer da Blackstone traz a discussão, ainda que de maneira incipiente. Segundo o texto, alguns fatores preocupam os autores. “A presunção de inocência pode ser violada tanto pela conduta de um tribunal quanto por comentários negativos a respeito de um réu feitos por agentes públicos para indicar uma visão concluída da culpa”, dizem os barristers.
Ainda segundo o parecer, “uma cobertura adversa da mídia também pode
prejudicar o direito a um julgamento justo”. O texto cita três casos julgados
pela Corte Europeia de Direitos Humanos em que a cobertura da imprensa é discutida.
O primeiro, conhecido como Abdulla Ali vs Reino Unido, foi julgado em 30
de junho de 2015, quando a Corte afirmou que “uma campanha virulenta da
imprensa pode afetar negativamente um julgamento justo por meio da influência
da opinião pública e, consequentemente, dos jurados chamados a decidir a culpa
de um acusado”.
Naquela ocasião, a corte desconsiderou a hipótese de as paixões
levantadas pela cobertura da imprensa contaminarem o julgamento. O fundamental
ali era debater a postura dos agentes públicos responsáveis pela acusação.“É
importante enfatizar o fato de que se autoridades públicas foram a fonte de
informações prejudiciais ao réu é relevante apenas para discutir se os leitores
viram tais informações como mais autorizadas ou não por causa da fonte”, diz o
acórdão.
Como exemplo, os barristers citam as declarações do
procurador da República Manoel Pastana à ConJur para defender
o uso das prisões preventivas para forçar as delações premiadas. “Em crime
de colarinho branco, onde existem rastros mas as pegadas não ficam, são
necessárias pessoas envolvidas com o esquema para colaborar. E o passarinho pra
cantar precisa estar preso”, disse, em novembro de 2014.
“O ponto focal deve ser a conduta desses agentes, e não a imparcialidade
do tribunal. Portanto, apesar do viés autoritário do material publicado, é
improvável que se chegue à conclusão de que um julgamento justo não é mais
possível.”
De acordo com o parecer, no entanto, o Conselho de Estado do Reino
Unido, em 2003, considerou que a atenção dada a um caso de homicídio prejudicou
o direito dos réus a ter um julgamento justo. “Suas excelências discutiram
apontaram que a questão decisiva era se as dúvidas quanto à imparcialidade do
julgamento foram objetivamente demonstradas. E o debate não se restringiu aos
efeitos da publicidade do caso nos jurados, mas também incluiu o papel do
juiz”, conclui o parecer.
*Texto editado às 19h45 de
28/1/2016 para acréscimo de informações.
Clique aqui para baixar o parecer, em inglês.
http://www.conjur.com.br/2016-jan-28/banca-inglesa-conducao-lava-jato-afronta-estado-direito
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