“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

STJ faz interpretação extensiva em Direito Penal contra o réu

SENSO INCOMUM
22 de outubro de 2015, 8h00
Abstract: O STJ deu provimento a agravo, alterando decisão do TJ-DF que reconhecera a prescrição em condenação criminal em crime de injúria racial. Para o STJ, injúria racial é alcançada pela imprescritibilidade, por ser, extensivamente, uma prática de racismo. Esta coluna mostrará o equívoco do STJ.[1]
Há poucos dias a ConJur publicou coluna (aqui) noticiando que o “blogueiro” Paulo Henrique Amorim foi condenado por injúria racial praticada contra o jornalista Heraldo Pereira. Amorim afirmou em seu blogue que Heraldo Pereira era “negro de alma branca” e “não conseguiu revelar nenhum atributo para fazer tanto sucesso, além de ser negro e de origem humilde”.

Claro que há todo um contexto no texto de PHA. Wittgenstein mostrava que é o contexto que dá sentido ao texto. O mesmo texto que diz “é proibido fazer topless” pode ter dois sentidos opostos, dependendo o contexto e lugar em que é dito: na praia de Ipanema ou de nudismo. Por isso sempre é difícil saber o sentido das coisas. Já na época pareceu que a frase — infeliz — de PHA tinha um nítido sentido de crítica política, em face dos contextos político-ideológico que PHA atribuía à HP. Não parece difícil compreender assim o contexto. Algo tipo “Carta Capital versus Revista Veja”, se me entendem. Até aí nenhum problema. PHA se excedeu na crítica e ultrapassou, segundo o judiciário, a linha demarcatória entre a crítica jornalista e a injúria. Mas a punição de PHA deveria ocorrer mesmo contra disposição legal, só para fazer “justiça”, uma vez que a crítica dirigida a HP foi ofensiva? Eis o busílis. Esclareço.
Para o bem e para o mal, como sempre digo — porque o direito deve ser aplicado por princípios — o delito estava prescrito, situação que, entretanto, foi superada no julgamento pelo STJ. Com efeito, o desembargador convocado Ericson Maranho concluiu que a injúria racial é imprescritível, uma vez que ela “também traduz preconceito de cor” e soma-se àqueles definidos na Lei 7.716/89, “cujo rol não é taxativo". Ainda, encampando entendimento de Guilherme Nucci, entendeu que a injúria racial seria mais um delito de racismo e imprescritível. Ora, se injúria qualificada é igual a racismo, porque seriam tipos penais diferentes? Mas isso não é aquilo que antigamente chamávamos de interpretação extensiva, vedada em direito penal? Está equivocado o doutrinador Guilherme Nucci. O direito penal não permite que se crie um rol extensivo, pela simples razão de que o cidadão deve saber, antes, aquilo pelo qual pode ser punido e o alcance da punição. Qual é o limite desse rol não taxativo, isto é, desse rol extensivo? Extensivo ao infinito? Uma anedota pode ser um crime imprescritível, mesmo enquadrado como injúria racial? Um pouco de ortodoxia no direito penal parece-me bom. Aliás, falta muita coisa nesse sentido no Brasil. Estamos ficando demasiadamente “avançados”. Moralizamos o direito. Acreditamos muito pouco no direito posto e queremos corrigir esse direito “insuficiente” com nossas opiniões e teses. Talvez por isso o relator no STJ tenha dito “tenho para mim”. Sim. Ele “tem para ele”. Só que o direito é de todos. É uma linguagem pública. Não depende de uma posição pessoal. Eu também não gosto de atitudes preconceituosas. Mas nem por isso posso atropelar a legislação. Mesmo que Celso Lafer diga que preconceito é coisa ruim, horrível. Eu também acho. Todos achamos. Aliás, quem acha que racismo ou preconceito é uma coisa boa?
Por isso, pergunto: será possível que o julgador vá além da lei? Sim, sei que no direito civil, amante ganha metade da herança com base no principio (sic) da afetividade. Mas no direito penal e no processo penal temos uma zona sem “afetividades”, se me entendem a crítica ao demasiado alargamento da interpretação das leis no Brasil sem que se faça, para tanto, uma jurisdição constitucional (lembro sempre das seis hipóteses pelas quais um juiz pode deixar de aplicar uma — não encontrei a sétima).
Por isso, será possível que o judiciário considere um crime incluído em uma lei que nada refere a tal liberdade? Será possível igualar delitos que o legislador expressamente diferenciou (caso contrário os trataria no mesmo documento, certo?) e que possuem claramente diferenças fundamentais?
Conforme tive a oportunidade de referir em Verdade e Consenso, sustentar a importância dos limites semânticos da Constituição e aferir a validade das leis em conformidade com a Constituição constitui, sim, um efetivo avanço no plano hermenêutico. Se o Direito tem um sentido interpretativo, um texto jurídico (lei, Constituição) não possui um sentido meramente analítico e nem tampouco dúctil.
O delito (a prática) de racismo é imprescritível, conforme previsto no artigo 5º da Constituição. É preciso, pois, diferenciar os crimes de racismo e de injúria racial (na verdade, injúria qualificada), sobretudo em matéria penal, campo no qual as liberdades públicas reclamam a tutela do Estado, em decorrência do princípio da legalidade estrita. Nesse sentido, a lei penal deve ser prévia, certa, escrita e estrita, razão pela qual não se admite analogia in malam partem, tampouco a criação judicial de tipos penais ou a extensão de um rol de delitos imprescritíveis. Só o legislador pode fazer isso. Por isso, deve haver um elenco taxativo.
Ora, uma simples análise da Lei 7.716/89 demonstra que, em momento algum, o legislador ordinário abriu qualquer possibilidade de que outros delitos fossem por ela abrangidos. Todos sabem que quando isso ocorre o legislador o faz expressamente. Como se não bastasse, o próprio objeto da lei é bem claro: “Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor”. Como a “injúria racial” não é objeto da lei que “define os crimes”, a conclusão lógica é que ela não pode ser considerada como crime da mesma natureza.
Sendo um pouco dogmático — e não há direito sem dogmática — acrescento que o artigo 20 da Lei 7.716/89 trata expressamente da discriminação racial, que se caracteriza quando tem por objetivo ultrajar uma raça, cor, etnia ou religião como um todo (negros, judeus, católicos...). Aqui o crime é “resultante” do preconceito. Este é o motivo do crime. Assim como se lê.
Registre-se que em momento algum o caso analisado recebeu este enquadramento. Ou seja, jamais o ofensor foi acusado da prática do delito previsto do artigo 20 da lei que define os crimes de preconceito.
Por sua vez, o Código Penal, em seu artigo 140, parágrafo 3º, prevê o crime de injúria qualificada, consistente na ofensa dirigida contra pessoa determinada, na qual o agente utiliza-se de elementos de raça, religião, condição de idoso ou portador de deficiência etc..
Veja-se que o objetivo do agente é ofender o indivíduo, e para tanto ele se utiliza de elementos referentes à condição pessoal da vítima, que pode ser a raça ou mesmo a situação de idoso. Aqui o delito não é “resultante” do preconceito, não é o preconceito o motivo do crime. O agente age motivado pela vontade de ofender o indivíduo, e para isso o agente pode utilizar de elementos raciais ou outros.
No caso analisado — ao que consta nos acórdãos examinados — o réu teria praticado o delito previsto no Código Penal. Ou seja, no caso, PHA não agiu motivado pelo preconceito contra uma raça e não agiu para ultrajá-la. Caso contrário, teria sido processado pela lei especial. Usar elementos raciais não é o mesmo que praticar racismo segundo a Lei Especial. A um olhar sociológico, isso tudo pode parecer uma tecnicidade, uma abstração. Só que o direito exige uma linguagem técnica. O direito é técnico. Assim como outras ciências. Há especificidades. Um homicídio não é um estelionato. Uma injúria, qualificada por preconceito, não é o mesmo que o crime de racismo. Podemos até pensar que sim. Podemos torcer para que seja. Mas, na democracia, desde a perspectiva iluminista, existem os princípios da legalidade e da anterioridade e, mais ainda, da proibição de analogia e interpretação extensiva nessas áreas da liberdade (direito penal e processo penal).
Um argumento mais duro e técnico: o delito de “injúria racial” foi incluído no CP em 1997, ou seja, muitos anos após a Lei 7.716/89, sendo que ambos os delitos possuem a mesma pena (reclusão de um a três anos e multa). Sem dúvida, caso o legislador desejasse o mesmo tratamento, não manteria dois dispositivos iguais. Simples assim.
Parece muito claro que os delitos analisados, embora possuam elementos comuns, são completamente distintos, e diverso deve ser o tratamento. Mesmo se você não gosta das posições políticas de PHA e goste do apresentador HP ou vice-versa (penso que ambos são bons no que fazem). Caso contrário, estar-se-ia admitindo uma espécie de mutatio libelli “às avessas” em instância superior, o que é vedado em função do sistema constitucional acusatório.
Numa palavra, a applicatio, a coerência e a integridade constituem limites objetivos à interpretação judicial, de modo que não é possível admitir a violação da autonomia do direito. Claro que práticas racistas são indesejáveis. Homicídios também. Corrupção, idem. Todo desgostou. Mas em nenhum dos casos é possível ir além dos limites do sistema legal. Mesmo que teleologicamente desejemos.
No caso, até entendo que, uma vez mais, o julgador brasileiro, com boa intenção e frustrado, tenta fazer mais do que a lei lhe autoriza. Só que isso configura ativismo. Para o bem ou para o mal! Muitos concordarão, com base no caso concreto, que a conduta do julgador é correta, embora não autorizada legalmente, pois permitiu a punição por uma efetiva e comprovada ofensa. O problema é que essa liberdade não pode ser casuística, e essa aprovação faz com que o julgador se senta livre para agir novamente superando o ordenamento jurídico pelos mais variados motivos, passando a agir como legislador, com as mais variadas consequências. Veja-se que o entendimento apresentado — e que serviu de forma utilitária para salvar o processo e aplicar a pena — conduzirá que se considere a “injúria qualificada” também como inafiançável, tratamento conferido pela Constituição aos delitos de racismo! E não esqueçamos que o STJ é o guardião da cidadania. Ele deve ser o farol da boa aplicação da lei ordinária. E que outros tribunais e juízes o seguem. E o seguirão.
Decidir os casos que envolvem os bens jurídicos penalmente tutelados é um complexo empreendimento interpretativo caracterizado pela ideia de responsabilidade do juiz, ou seja, por decisões pautadas em uma coerência de princípios. O reconhecimento da tese da imprescritibilidade do crime de injúria racional não se coaduna com o “romance em cadeia” (Dworkin) dos precedentes judiciais oriundos do Superior Tribunal de Justiça, em prejuízo à estabilização da jurisprudência — aliás, conforme previsto no novo CPC, aplicável subsidiariamente ao processo penal.
A esse respeito, no RESP 911.183, de relatoria do ministro Felix Fischer, envolvendo um caso de maior gravidade, no qual o acusado foi denunciado pelo crime de preconceito racial e de etnia (artigo 20, parágrafo 2º, da Lei 7.716/89), incitando a discriminação e o preconceito de raça e de etnia, através de meio de comunicação social (ao vivo em programa televisivo do qual era apresentador), em face dos índios e das comunidades indígenas da região Sul do país (Seara, Nonoai e Iraí, no Estado do Rio Grande do Sul), assim decidiu a Corte:
“(...) Para que o Direito Penal atue eficazmente na coibição às mais diversas formas de discriminação e preconceito, importante que os operadores do Direito não se deixem influenciar apenas pelo discurso politicamente correto que a questão da discriminação racial hoje envolve, tampouco pelo nem sempre legítimo clamor social por igualdade.
Mostra-se de suma importância que, na busca da efetividade do direito legalmente protegido, o julgador trate do tema do preconceito racial despido de qualquer pré-concepção ou de estigmas há muito arraigados em nossa sociedade, marcada por sua diversidade étnica e pluralidade social, de forma a não balizar a violação do fundamento tão caro à humanidade e elencado por nossos constituintes como um dos pilares da República Federativa do Brasil: o da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF/88).
Para a aplicação justa e equânime do tipo penal previsto no art. 20 da Lei n. 7.716/89, tem-se como imprescindível a presença do dolo específico na conduta do agente, que consiste na vontade livre e consciente de praticar, induzir ou incitar o preconceito ou discriminação racial (...)” (RESP 911.183, Rel. Min. Felix Fischer, Rel. p/ acórdão Min. Jorge Mussi, 5ª Turma do STJ, j. 4-12-2008).
Enfim, o controle penal das condutas discriminatórias é de fundamental importância para a consolidação de uma democracia inclusiva e do respeito aos direitos humanos, independentemente de critérios envolvendo a raça ou a etnia. Por outro lado, não se pode claudicar, relativizando garantias penais estruturantes do Estado Democrático de Direito, a exemplo do princípio da legalidade penal estrita, sob pena de um retrocesso histórico ao Ancién Régime. E isso é uma questão de princípio!

http://www.conjur.com.br/2015-out-22/senso-incomum-stj-faz-interpretacao-extensiva-direito-penal-reu

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