STJ faz interpretação extensiva em Direito Penal contra o réu
SENSO
INCOMUM
22 de outubro de 2015, 8h00
Abstract: O STJ deu
provimento a agravo, alterando decisão do TJ-DF que reconhecera a prescrição em
condenação criminal em crime de injúria racial. Para o STJ, injúria racial é
alcançada pela imprescritibilidade, por ser, extensivamente, uma prática de
racismo. Esta coluna mostrará o equívoco do STJ.[1]
Há poucos dias a ConJur publicou
coluna (aqui) noticiando que o
“blogueiro” Paulo Henrique Amorim foi condenado por injúria racial praticada
contra o jornalista Heraldo Pereira. Amorim afirmou em seu blogue
que Heraldo Pereira era “negro de alma branca” e “não conseguiu
revelar nenhum atributo para fazer tanto sucesso, além de ser negro e de origem
humilde”.
Claro que há todo um contexto no texto de PHA. Wittgenstein mostrava que
é o contexto que dá sentido ao texto. O mesmo texto que diz “é proibido fazer
topless” pode ter dois sentidos opostos, dependendo o contexto e lugar em que é
dito: na praia de Ipanema ou de nudismo. Por isso sempre é difícil saber o
sentido das coisas. Já na época pareceu que a frase — infeliz — de PHA tinha um
nítido sentido de crítica política, em face dos contextos político-ideológico
que PHA atribuía à HP. Não parece difícil compreender assim o contexto. Algo tipo
“Carta Capital versus Revista Veja”, se me entendem. Até aí nenhum problema.
PHA se excedeu na crítica e ultrapassou, segundo o judiciário, a linha
demarcatória entre a crítica jornalista e a injúria. Mas a punição de PHA
deveria ocorrer mesmo contra disposição legal, só para fazer “justiça”, uma vez
que a crítica dirigida a HP foi ofensiva? Eis o busílis. Esclareço.
Para o bem e para o mal, como sempre digo — porque o direito deve
ser aplicado por princípios — o delito estava prescrito, situação que, entretanto,
foi superada no julgamento pelo STJ. Com efeito, o desembargador
convocado Ericson Maranho concluiu que a injúria racial é imprescritível,
uma vez que ela “também traduz preconceito de cor” e soma-se àqueles definidos
na Lei 7.716/89, “cujo rol não é taxativo". Ainda, encampando entendimento
de Guilherme Nucci, entendeu que a injúria racial seria mais um delito de
racismo e imprescritível. Ora, se injúria qualificada é igual a racismo, porque
seriam tipos penais diferentes? Mas isso não é aquilo que antigamente
chamávamos de interpretação extensiva, vedada em direito penal? Está equivocado
o doutrinador Guilherme Nucci. O direito penal não permite que se crie um rol
extensivo, pela simples razão de que o cidadão deve saber, antes, aquilo pelo qual
pode ser punido e o alcance da punição. Qual é o limite desse rol não taxativo,
isto é, desse rol extensivo? Extensivo ao infinito? Uma anedota pode ser um
crime imprescritível, mesmo enquadrado como injúria racial? Um pouco de
ortodoxia no direito penal parece-me bom. Aliás, falta muita coisa nesse
sentido no Brasil. Estamos ficando demasiadamente “avançados”. Moralizamos o
direito. Acreditamos muito pouco no direito posto e queremos corrigir esse
direito “insuficiente” com nossas opiniões e teses. Talvez por isso o relator
no STJ tenha dito “tenho para mim”. Sim. Ele “tem para ele”. Só que o direito é
de todos. É uma linguagem pública. Não depende de uma posição pessoal. Eu
também não gosto de atitudes preconceituosas. Mas nem por isso posso atropelar a
legislação. Mesmo que Celso Lafer diga que preconceito é coisa ruim, horrível.
Eu também acho. Todos achamos. Aliás, quem acha que racismo ou preconceito é
uma coisa boa?
Por isso, pergunto: será possível que o julgador vá além da lei? Sim,
sei que no direito civil, amante ganha metade da herança com base no principio
(sic) da afetividade. Mas no direito penal e no processo penal temos uma zona
sem “afetividades”, se me entendem a crítica ao demasiado alargamento da
interpretação das leis no Brasil sem que se faça, para tanto, uma jurisdição
constitucional (lembro sempre das seis hipóteses pelas quais um juiz pode
deixar de aplicar uma — não encontrei a sétima).
Por isso, será possível que o judiciário considere um crime incluído em
uma lei que nada refere a tal liberdade? Será possível igualar delitos que o
legislador expressamente diferenciou (caso contrário os trataria no mesmo
documento, certo?) e que possuem claramente diferenças fundamentais?
Conforme tive a oportunidade de
referir em Verdade e Consenso, sustentar a importância dos limites
semânticos da Constituição e aferir a validade das leis em conformidade com a
Constituição constitui, sim, um efetivo avanço no plano hermenêutico. Se o
Direito tem um sentido interpretativo, um texto jurídico (lei, Constituição)
não possui um sentido meramente analítico e nem tampouco dúctil.
O delito (a prática) de racismo é
imprescritível, conforme previsto no artigo 5º da Constituição. É preciso,
pois, diferenciar os crimes de racismo e de injúria racial (na verdade, injúria
qualificada), sobretudo em matéria penal, campo no qual as liberdades públicas
reclamam a tutela do Estado, em decorrência do princípio da legalidade estrita.
Nesse sentido, a lei penal deve ser prévia, certa, escrita e estrita, razão
pela qual não se admite analogia in malam partem, tampouco a
criação judicial de tipos penais ou a extensão de um rol de delitos
imprescritíveis. Só o legislador pode fazer isso. Por isso, deve haver um
elenco taxativo.
Ora, uma simples análise da Lei
7.716/89 demonstra que, em momento algum, o legislador ordinário abriu qualquer
possibilidade de que outros delitos fossem por ela abrangidos. Todos sabem que
quando isso ocorre o legislador o faz expressamente. Como se não bastasse, o
próprio objeto da lei é bem claro: “Define os crimes resultantes de
preconceito de raça ou de cor”. Como a “injúria racial” não é objeto da lei que
“define os crimes”, a conclusão lógica é que ela não pode ser considerada como
crime da mesma natureza.
Sendo um pouco dogmático — e não há direito sem dogmática
— acrescento que o artigo 20 da Lei 7.716/89 trata expressamente da
discriminação racial, que se caracteriza quando tem por objetivo ultrajar uma
raça, cor, etnia ou religião como um todo (negros, judeus, católicos...). Aqui
o crime é “resultante” do preconceito. Este é o motivo do crime. Assim como se
lê.
Registre-se que em momento algum o caso analisado recebeu este
enquadramento. Ou seja, jamais o ofensor foi acusado da prática do delito
previsto do artigo 20 da lei que define os crimes de preconceito.
Por sua vez, o Código Penal, em seu artigo 140, parágrafo 3º, prevê
o crime de injúria qualificada, consistente na ofensa dirigida contra pessoa
determinada, na qual o agente utiliza-se de elementos de raça, religião,
condição de idoso ou portador de deficiência etc..
Veja-se que o objetivo do agente é ofender o indivíduo, e para tanto ele
se utiliza de elementos referentes à condição pessoal da vítima, que pode ser a
raça ou mesmo a situação de idoso. Aqui o delito não é “resultante” do
preconceito, não é o preconceito o motivo do crime. O agente age motivado pela
vontade de ofender o indivíduo, e para isso o agente pode utilizar de elementos
raciais ou outros.
No caso analisado — ao que consta nos acórdãos examinados — o
réu teria praticado o delito previsto no Código Penal. Ou seja, no caso, PHA
não agiu motivado pelo preconceito contra uma raça e não agiu para ultrajá-la.
Caso contrário, teria sido processado pela lei especial. Usar elementos raciais
não é o mesmo que praticar racismo segundo a Lei Especial. A um olhar
sociológico, isso tudo pode parecer uma tecnicidade, uma abstração. Só que o
direito exige uma linguagem técnica. O direito é técnico. Assim como outras
ciências. Há especificidades. Um homicídio não é um estelionato. Uma injúria,
qualificada por preconceito, não é o mesmo que o crime de racismo. Podemos até
pensar que sim. Podemos torcer para que seja. Mas, na democracia, desde a
perspectiva iluminista, existem os princípios da legalidade e da anterioridade
e, mais ainda, da proibição de analogia e interpretação extensiva nessas áreas
da liberdade (direito penal e processo penal).
Um argumento mais duro e técnico: o delito de “injúria racial” foi
incluído no CP em 1997, ou seja, muitos anos após a Lei 7.716/89, sendo que
ambos os delitos possuem a mesma pena (reclusão de um a três anos e multa). Sem
dúvida, caso o legislador desejasse o mesmo tratamento, não manteria dois
dispositivos iguais. Simples assim.
Parece muito claro que os delitos
analisados, embora possuam elementos comuns, são completamente distintos, e
diverso deve ser o tratamento. Mesmo se você não gosta das posições políticas
de PHA e goste do apresentador HP ou vice-versa (penso que ambos são bons no
que fazem). Caso contrário, estar-se-ia admitindo uma espécie de mutatio
libelli “às avessas” em instância superior, o que é vedado em função
do sistema constitucional acusatório.
Numa palavra, a applicatio,
a coerência e a integridade constituem limites objetivos à interpretação
judicial, de modo que não é possível admitir a violação da autonomia do
direito. Claro que práticas racistas são indesejáveis. Homicídios também.
Corrupção, idem. Todo desgostou. Mas em nenhum dos casos é possível ir além dos
limites do sistema legal. Mesmo que teleologicamente desejemos.
No caso, até entendo que, uma vez mais, o julgador brasileiro, com boa
intenção e frustrado, tenta fazer mais do que a lei lhe autoriza. Só que isso
configura ativismo. Para o bem ou para o mal! Muitos concordarão, com base no
caso concreto, que a conduta do julgador é correta, embora não autorizada
legalmente, pois permitiu a punição por uma efetiva e comprovada ofensa. O
problema é que essa liberdade não pode ser casuística, e essa aprovação faz com
que o julgador se senta livre para agir novamente superando o ordenamento
jurídico pelos mais variados motivos, passando a agir como legislador, com as
mais variadas consequências. Veja-se que o entendimento apresentado — e
que serviu de forma utilitária para salvar o processo e aplicar a pena —
conduzirá que se considere a “injúria qualificada” também como inafiançável,
tratamento conferido pela Constituição aos delitos de racismo! E não esqueçamos
que o STJ é o guardião da cidadania. Ele deve ser o farol da boa aplicação da
lei ordinária. E que outros tribunais e juízes o seguem. E o seguirão.
Decidir os casos que envolvem os bens
jurídicos penalmente tutelados é um complexo empreendimento interpretativo
caracterizado pela ideia de responsabilidade do juiz, ou seja, por decisões
pautadas em uma coerência de princípios. O reconhecimento da tese
da imprescritibilidade do crime de injúria racional não se coaduna com o
“romance em cadeia” (Dworkin) dos precedentes judiciais oriundos do Superior
Tribunal de Justiça, em prejuízo à estabilização da jurisprudência — aliás,
conforme previsto no novo CPC, aplicável subsidiariamente ao processo penal.
A esse respeito, no RESP 911.183, de relatoria do ministro Felix
Fischer, envolvendo um caso de maior gravidade, no qual o acusado foi
denunciado pelo crime de preconceito racial e de etnia (artigo 20,
parágrafo 2º, da Lei 7.716/89), incitando a discriminação e o preconceito
de raça e de etnia, através de meio de comunicação social (ao vivo em programa
televisivo do qual era apresentador), em face dos índios e das comunidades
indígenas da região Sul do país (Seara, Nonoai e Iraí, no Estado do Rio Grande
do Sul), assim decidiu a Corte:
“(...) Para que o
Direito Penal atue eficazmente na coibição às mais diversas formas de
discriminação e preconceito, importante que os operadores do Direito não se
deixem influenciar apenas pelo discurso politicamente correto que a questão da
discriminação racial hoje envolve, tampouco pelo nem sempre legítimo clamor
social por igualdade.
Mostra-se de suma
importância que, na busca da efetividade do direito legalmente protegido, o
julgador trate do tema do preconceito racial despido de qualquer pré-concepção
ou de estigmas há muito arraigados em nossa sociedade, marcada por sua
diversidade étnica e pluralidade social, de forma a não balizar a violação do
fundamento tão caro à humanidade e elencado por nossos constituintes como um
dos pilares da República Federativa do Brasil: o da dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III, da CF/88).
Para a aplicação
justa e equânime do tipo penal previsto no art. 20 da Lei n. 7.716/89, tem-se
como imprescindível a presença do dolo específico na conduta do agente, que
consiste na vontade livre e consciente de praticar, induzir ou incitar o
preconceito ou discriminação racial (...)” (RESP 911.183, Rel. Min. Felix
Fischer, Rel. p/ acórdão Min. Jorge Mussi, 5ª Turma do STJ, j. 4-12-2008).
Enfim, o controle penal das condutas
discriminatórias é de fundamental importância para a consolidação de uma
democracia inclusiva e do respeito aos direitos humanos, independentemente de
critérios envolvendo a raça ou a etnia. Por outro lado, não se pode claudicar,
relativizando garantias penais estruturantes do Estado Democrático de Direito,
a exemplo do princípio da legalidade penal estrita, sob pena de um retrocesso
histórico ao Ancién Régime. E isso é uma questão de princípio!
http://www.conjur.com.br/2015-out-22/senso-incomum-stj-faz-interpretacao-extensiva-direito-penal-reu
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