Em entrevista, ministro Roberto Barroso comenta seu voto sobre descriminalização da maconha
Terça-feira, 15 de setembro de 2015
O ministro Luís
Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, concedeu entrevista publicada
nesta segunda-feira (14) pela BBC Brasil, na qual explica seu voto no Recurso
Extraordinário (RE) 635659, que discute a descriminalização do porte de drogas
para uso pessoal. Na sessão de julgamento do dia 10/9, o ministro se manifestou
exclusivamente sobre o uso da maconha, e não de outras drogas, e propôs a
fixação de um critério para distinguir o consumo do tráfico.
Na entrevista, ele
detalha sua posição pessoal sobre o tema e explica as razões pelas quais
preferiu, nesse momento, concentrar a decisão na questão da maconha, tendo em
vista que, no caso concreto julgado, se tratava de porte dessa droga. “A minha
ideia de não descriminalizar tudo não é uma posição conservadora. É uma posição
de quem quer produzir um avanço consistente", afirmou à BBC.
Até o momento, três
ministros votaram no julgamento do RE 635659. O relator, ministro Gilmar
Mendes, votou pela inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006),
que define como crime o porte de drogas para uso pessoal. O ministro Edson
Fachin defendeu descriminalizar o porte de maconha para consumo próprio. Após o
voto de Barroso, o julgamento foi novamente suspenso por pedido de vista do
ministro Teori Zavascki.
Leia abaixo a íntegra da
entrevista.
Ministro do STF diz
que Brasil deve 'legalizar a maconha e ver como isso funciona na vida real'
Mariana Schreiber
Da BBC Brasil em Brasília
14 setembro 2015
Da BBC Brasil em Brasília
14 setembro 2015
O ministro do
Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso acredita que a
descriminalização do consumo da maconha é "um primeiro passo" que
pode levar "a uma política de legalização (das drogas) e eliminação do
poder do tráfico".
Em entrevista
exclusiva à BBC Brasil, ele explicou por que decidiu neste momento defender
apenas a liberação do consumo de maconha, adotando uma posição divergente da do
ministro Gilmar Mendes, relator do caso que avalia a descriminalização do uso
de drogas. Mendes votou por descriminalizar todos os entorpecentes.
Barroso disse que
adotou uma posição "um pouco menos avançada" porque acredita que
assim "teria mais chance de conquistar a maioria" do tribunal.
"Tem que
avançar aos poucos. Legalizar a maconha e ver como isso funciona na vida real.
E em seguida, se der certo, fazer o mesmo teste com outras drogas",
afirmou.
Como hoje ainda há
muita resistência contra a liberação das drogas, o ministro considera que, se o
STF decidir por descriminalizar tudo, "existe o risco de haver uma reação
da sociedade contra a decisão, o que os americanos chamam de backlash".
"A minha ideia
de não descriminalizar tudo não é uma posição conservadora. É uma posição de
quem quer produzir um avanço consistente", afirmou.
A decisão de
Barroso de limitar seu voto à maconha surpreendeu os defensores da liberação
das drogas porque ele é considerado um dos ministros mais progressistas do
tribunal.
Por outro lado, ele
teve uma posição considerada mais ousada que Gilmar Mendes ao propor que seja
usado como parâmetro objetivo para distinguir usuários de traficantes o limite
de porte de 25 gramas. Mendes também considera importante ter um parâmetro, mas
diz que é função do Congresso decidir.
O objetivo de criar
esse critério é reduzir a prisão de usuários, principalmente no caso dos mais
pobres, pois hoje a diferenciação entre os dois tipos de porte (de usuários e
traficantes) depende muito da avaliação subjetiva de policiais.
Até agora, apenas
três ministros votaram - Edson Fachin também defendeu liberar apenas o consumo
da maconha. Após o voto de Barroso, o julgamento foi novamente suspenso na
última quinta-feira por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki.
Os 11 ministros
estão analisando um Recurso Extraordinário que questiona se o artigo 28 da Lei
de Drogas é inconstitucional. Esse artigo prevê que é crime adquirir, guardar
ou transportar droga para consumo pessoal, assim como cultivar plantas com essa
finalidade. O julgamento não analisa a questão da venda das drogas, que
continuará ilegal qualquer que seja o resultado.
O recurso foi
movido pela Defensoria Pública de São Paulo em favor de um réu pego com 3
gramas de maconha na prisão. A Defensoria argumenta que a lei fere o direito à
liberdade, à privacidade, e à autolesão (direito do indivíduo de tomar atitudes
que prejudiquem apenas si mesmo), garantidos na Constituição Federal.
Barroso concordou
com esses argumentos, mas como o caso concreto trata do porte de maconha,
considerou que não era o momento de incluir no seu voto outras drogas.
Leia abaixo os
principais trechos da entrevista concedida por telefone dos Estados Unidos,
onde ele participa de um evento com ministros de cortes supremas de diversos
países na Universidade Yale.
BBC Brasil - Por
que o senhor considera que neste momento só se deve descriminalizar a maconha?
Luís Roberto
Barroso - Por três razões principais. A primeira delas, técnica, é que o caso
concreto envolve o consumo de maconha. É mais típico no Supremo, nos casos em
que se quer dar repercussão geral (quando uma decisão sobre um caso concreto
passa a valer para todo mundo), que você se atenha a formular a tese jurídica
em relação à situação concreta que está sendo discutida. Eu não disse que é
constitucional criminalizar as outras drogas. Apenas disse que, como o caso era
maconha, eu não me manifestaria sobre as outras.
A segunda razão, um
pouco decorrente da primeira, é que a maior parte das informações que os
ministros receberam ou pesquisaram eram referentes à maconha - os memoriais dos
amici curiae (instituições que se inscrevem para opinar no julgamento), as
experiências dos outros países que foram examinadas. Portanto, não tínhamos
estudado especificamente a situação do crack, por exemplo.
A terceira razão,
possivelmente uma das mais importantes, é que eu não sei bem qual é a posição
do Tribunal. Nós temos um estilo de deliberação em que as pessoas não conversam
internamente. Eu achei que uma posição um pouco menos avançada teria mais
chance de conquistar a maioria.
Também tive a preocupação
de nós não perdermos a interlocução com a sociedade, que não apoia
majoritariamente a descriminalização das drogas. Mas eu acho que em relação à
maconha é possível conquistar, nesse momento, com explicações racionais, essa
adesão da sociedade. Ao passo que, em relação às drogas mais pesadas, isso
seria mais difícil.
Minha posição é que
a descriminalização em relação a outras drogas deve ser feita mediante um
debate consistente, entre pessoas esclarecidas e informadas, de modo a
conquistar a adesão da sociedade, em lugar de funcionar como uma imposição
arbitrária do tribunal. Racionalidade, seriedade no debate e consistência nos
argumentos produzem melhores resultados que palavras de ordem.
BBC Brasil - Mas
apesar de o fato concreto ser sobre maconha, na prática está se questionando a
constitucionalidade de um artigo que trata de todas as drogas. Não seria uma
oportunidade de tratar o tema de forma mais ampla?
Barroso - Essa não
é uma ação direta de inconstitucionalidade, é um recurso extraordinário (uma
ação direta questiona se uma lei desrespeita a Constituição Federal em tese,
enquanto um recurso extraordinário parte de um caso concreto para analisar a
constitucionalidade de uma lei; apenas poucas instituições específicas podem
mover uma ação direta de inconstitucionalidade).
É certo que,
incidentalmente, para resolver o caso concreto, a gente está declarando a
inconstitucionalidade do artigo 28 (da Lei de Drogas). Mas esta não foi uma
ação voltada para discutir a constitucionalidade do artigo 28. Talvez fosse até
menos técnico a gente avançar na discussão de outras drogas quando o caso
concreto era um caso de maconha.
A maconha é uma
droga que está aí há muito tempo, cujo efeito de médio e longo prazo já é
relativamente testado. Ao passo que o crack, por exemplo, é um fenômeno
relativamente novo.
BBC Brasil - No
caso do crack, alguns estudos no exterior, como as pesquisas do neurocientista
americano Carl Hart, apontam que não é uma droga que vicia mais que maconha. O
senhor estaria disposto em pesquisar mais sobre o assunto e talvez ampliar o
seu voto na volta do julgamento?
Barroso - No
sistema de deliberação do Supremo, nunca é descartável você poder reavaliar
(seu voto até o final do julgamento). Agora, eu acho que seria mais próprio
isso ser discutido num processo específico. Até eventualmente com a realização
de uma audiência pública, em que viessem especialistas exporem ao tribunal a
lógica do crack e ver até que ponto ela é comparável à da maconha.
BBC Brasil - Nesse
caso, teria que haver um julgamento para cada tipo de droga ou poderia então
haver uma ação direta de inconstitucionalidade que questionasse o artigo 28 e
pudesse ter um resultado abrangente?
Barroso -
Possivelmente se deveria ter, ainda que fosse um único processo, uma discussão
informada sobre as outras drogas - como heroína, cocaína, crack. Acho que a
descriminalização de outras drogas, de uma maneira responsável, não pode
prescindir dessas informações e desse debate.
BBC Brasil -
Algumas pessoas que discordaram do seu voto consideram que descriminalizar só a
maconha poderia ser elitista. Como vê esse argumento?
Barroso - Em grande
parte é um argumento de quem não conhece a realidade da quantidade enorme de
pessoas pobres presa por tráfico de maconha. O fato de uma decisão não alcançar
todas as pessoas que são discriminadas não significa que ela seja irrelevante
para aquelas que efetivamente o são.
Entendo a crítica
dos especialistas, mas eles precisam considerar que uma decisão da Suprema
Corte considerando inconstitucional uma criminalização feita pelo legislador
tem que ser uma decisão com algum grau de sintonia com o sentimento social.
Tomar uma medida
dessa importância sem a capacidade de trazer a sociedade junto pode acarretar
um risco que os autores americanos chamam de backlash, que é uma
certa reação generalizada que dificulte o respeito e o cumprimento da decisão.
BBC Brasil - Por
exemplo, se o Congresso criar novas leis dificultando a implementação da
decisão?
Barroso -
Exatamente isso. Por exemplo, vem o Congresso e cria uma lei esvaziando a
decisão do Supremo, dentro dos limites razoáveis de atuação do Congresso. Ou
problemas de cumprimento da decisão.
A decisão sobre
aborto nos Estados Unidos teve um backlash enorme. Na
Alemanha, uma decisão da corte constitucional federal que determinou a retirada
dos crucifixos das escolas na Baviera também. Quando você está lidando com
sentimento social, tem que acertar a dose, sob pena de não trazer a sociedade
junto.
BBC Brasil - Outro
ponto no qual o senhor e o ministro Gilmar Mendes divergem é na questão da
criação de critérios objetivos pelo Supremo para distinguir porte para consumo
e para tráfico. Sem esses critérios, os efeitos práticos de uma eventual
descriminalização ficam limitados?
Barroso - Considero
esta fixação de critérios até mais importante que a descriminalização.
Como no Brasil hoje
o porte e o consumo já não são punidos com prisão, mas com medidas alternativas
mais brandas, na prática o grande problema é a falta de critério, porque isso
cria um impacto extremamente discriminatório sobre as pessoas pobres.
Aí sim a
descriminalização seria elitista, se nós não fixarmos um critério, porque no
mundo real, pelas mesmas quantidades de maconha, os jovens da Zona Sul (do Rio
de Janeiro) são tratados como consumidores e os jovens das áreas mais modestas
são tratados como traficantes.
Portanto, o abismo
social brasileiro se manifesta de uma maneira muito visível e dramática nesta
questão da quantidade que caracteriza o consumo ou tráfico.
O ideal,
hipoteticamente, é descriminalizar todas as drogas e vender elas sobre
regulação econômica e administrativa do Estado.
BBC Brasil - Seria
a legalização nesse caso?
Barroso - A melhor
solução seria a legalização, em tese. O principal objetivo de uma política de
drogas no Brasil deve ser acabar com o poder do tráfico. O maior problema
brasileiro não é o consumidor, é o poder opressivo que tráfico tem sobre as
comunidades pobres, ditando a lei local e cooptando a juventude.
Portanto, a minha
visão de médio e longo prazo em matéria de drogas é legalizar todas para
quebrar o poder do tráfico, que advém da ilegalidade.
Agora acho que você
não pode começar com uma medida assim radical. Tem que avançar aos poucos.
Legalizar a maconha e ver como isso funciona na vida real. E em seguida, se der
certo, fazer o mesmo teste com outras drogas.
Insisto que a minha
ideia de não descriminalizar tudo não é uma posição conservadora. É uma posição
de quem quer produzir um avanço consistente, sem retrocesso, não um avanço sem
base.
BBC Brasil -Pessoas
contrárias à liberação das drogas dizem que a descriminalização elevaria o
consumo. Argumentam que não há recursos suficientes para o governo investir
mais na prevenção e tratamento. Por que o senhor discorda?
Barroso - Não há
recursos porque eles estão sendo gastos na política errada. Cada vaga no
sistema penitenciário custa R$ 44 mil, e que cada preso custa R$ 2 mil por mês,
se você multiplica isso por cerca de 150 mil presos por tráfico, veja a
quantidade de recursos que produz.
A segunda razão,
que é um argumento que deveria convencer até mesmo quem filosoficamente seja
contrário à descriminalização das drogas, é a seguinte: você prendeu mais de
uma centena de milhares de pessoas por drogas sem que isso produzisse nenhum
impacto sobre consumo.
Você prende esses
aviões, esse pequeno traficante que faz a distribuição, e imediatamente ele é
reposto por um exército de reserva que existe nas comunidades carentes. Você
está entupindo as prisões, destruindo a vida desses jovens, sem produzir nenhum
impacto relevante na realidade, porque o nível do tráfico continua igual.
Há um outro
argumento que eu usei, que me impressionou muito quando estudei a matéria, que
foi o depoimento do secretário de Segurança do Rio de Janeiro, (José Mariano) Beltrame,
que disse essa "é uma guerra inútil, uma guerra perdida". Quem fez
essa declaração não foi um juiz em seu gabinete, ou um professor na sala de
aula, foi o comandante da guerra às drogas no Rio de Janeiro.
Quanto ao argumento
do aumento do consumo, reconheço que esse risco existe num primeiro momento.
Mas li matérias que relataram pesquisas dizendo que, em curto espaço de tempo,
os índices ficavam inalterados. E, em Portugal, as pesquisas comprovaram que em
relação aos jovens o consumo caiu (após a descriminalização).
BBC Brasil - Qual a
importância desse julgamento? Que consequências concretas a descriminalização
da maconha traria ao país?
Barroso - Pode ser
o marco inicial de uma nova política pública em matéria de drogas. Um primeiro
passo que possa levar a uma política de legalização e eliminação do poder do
tráfico. Para usar um lugar comum: Roma não se fez em um dia. A gente na vida
tem que respeitar o ciclo de amadurecimento da sociedade.
Em segundo lugar,
acho que ela pode produzir o impacto relevante de diminuir o encarceramento de
pessoas pobres no país e, portanto, diminuir a pressão sobre o sistema
carcerário, destruindo a vida desses jovens que, na maioria das vezes, são réus
primários.
BBC Brasil - Isso
no caso de serem criados critérios objetivos para diferenciar usuário e
traficante?
Barroso - Sim, no
caso de serem aprovados os critérios. Em terceiro lugar, acho que é uma decisão
que liberta um grande contingente de pessoas de bem da ilegalidade, que permite
com que as pessoas vivam as suas próprias vidas sem ingerência estatal direta.
O meu medo em
relação ao crack, e por isso eu preciso estudar mais, é que eu acho que uma
pessoa pode fumar maconha e viver feliz e produtivamente a sua vida, e
aparentemente isso é impossível de acontecer com alguém viciado em crack. Por
esta razão, eu acho que uma coisa não é rigorosamente igual à outra e,
portanto, elas precisam ser estudadas separadamente.
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=299756
Comentários
Postar um comentário