Alterações do Código Civil pela Lei 13.146/2015 - Repercussões para o Direito de Família e confrontações com o Novo CPC. Primeira parte.
Foi
sancionada, no dia 6 de julho de 2015, a Lei 13.146/2015, que institui
o Estatuto da Pessoa com Deficiência. A norma foi publicada no dia 7 de julho e
entra em vigor 180 dias após sua publicação, ao final do mês de dezembro de
2015.
Entre
vários comandos que representam notável avanço para a proteção da dignidade da
pessoa com deficiência, a nova legislação altera e revoga alguns artigos doCódigo Civil (arts.
114 a 116), trazendo grandes mudanças estruturais e funcionais na antiga teoria
das incapacidades, o que repercute diretamente para institutos do Direito de
Família, como o casamento, a interdição e a curatela.
Interessante
observar que a norma também alterou alguns artigos do Código Civil que
foram revogados expressamente pelo Novo CPC (art. 1.072).
Nessa realidade, salvo uma nova iniciativa legislativa, as alterações terão
aplicação por curto intervalo de tempo, nos anos de 2015 e 2016, entre o
período da sua entrada em vigor e o início de vigência do Código de Processo Civil (a
partir de março do próximo ano). Isso parece não ter sido observado pelas
autoridades competentes, quando da sua elaboração e promulgação, havendo um
verdadeiro atropelamento legislativo.
Partindo
para a análise do texto legal, foram revogados todos os incisos do art. 3º doCódigo Civil, que tinha a
seguinte redação: “São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos
da vida civil: I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por enfermidade
ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática
desses atos; III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir
sua vontade”. Também foi alterado o caput do comando, passando a estabelecer
que “são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil
os menores de 16 anos”.
Em suma,
não existe mais, no sistema privado brasileiro, pessoa absolutamente incapaz
que seja maior de idade. Como consequência, não há que se falar mais em ação de
interdição absoluta no nosso sistema civil, pois os menores não são
interditados. Todas as pessoas com deficiência, das quais tratava o comando
anterior, passam a ser, em regra, plenamente capazes para o Direito Civil, o
que visa a sua plena inclusão social, em prol de sua dignidade.
Merece
destaque, para demonstrar tal afirmação, o art. 6º da Lei 13.146/2015, segundo o
qual a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive
para: a) casar-se e constituir união estável; b) exercer direitos sexuais e
reprodutivos; c) exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter
acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; d)
conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; e) exercer
o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e f) exercer o
direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando,
em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Em suma, no plano familiar
há uma expressa inclusão plena das pessoas com deficiência.
Eventualmente,
e em casos excepcionais, tais pessoas podem ser tidas como relativamente
incapazes em algum enquadramento do novo art. 4º do Código Civil. Cite-se, a
título de exemplo, a situação de um deficiente que seja viciado em tóxicos,
podendo ser tido como incapaz como qualquer outro sujeito.
Esse
último dispositivo também foi modificado de forma considerável pelo Estatuto da
Pessoa com Deficiência. O seu inciso II não faz mais referência às pessoas com
discernimento reduzido, que não são mais consideradas relativamente incapazes,
como antes estava regulamentado. Apenas foram mantidas no diploma as menções
aos ébrios habituais (entendidos como os alcoólatras) e aos viciados em
tóxicos, que continuam dependendo de um processo de interdição relativa, com
sentença judicial, para que sua incapacidade seja reconhecida.
Também
foi alterado o inciso III do
art. 4º do CC/2002, sem mencionar
mais os excepcionais sem desenvolvimento completo. O inciso anterior tinha
incidência para o portador de síndrome de Down, não considerado mais um
incapaz. A nova redação dessa norma passa a enunciar as pessoas que, por causa
transitória ou permanente, não puderem exprimir vontade, o que antes estava
previsto no inciso III do art. 3º como situação típica de incapacidade
absoluta. Agora a hipótese é de incapacidade relativa.
Verificadas
as alterações, parece-nos que o sistema de incapacidades deixou de ter um
modelo rígido, passando a ser mais maleável, pensado a partir das
circunstâncias do caso concreto e em prol da inclusão das pessoas com
deficiência, tutelando a sua dignidade e a sua interação social. Isso já tinha
ocorrido na comparação das redações do Código Civil de 2002 e
do seu antecessor. Como é notório, a codificação material de 1916 mencionava os
surdos-mudos que não pudessem se expressar como absolutamente incapazes (art. 5º, III, do CC/1916). A norma então em vigor, antes das recentes
alterações ora comentadas, tratava das pessoas que, por causa transitória ou
definitiva, não pudessem exprimir sua vontade, agora tidas como relativamente
incapazes, reafirme-se.
Todavia,
pode ser feita uma crítica inicial em relação à mudança do sistema. Ela foi
pensada para a inclusão das pessoas com deficiência, o que é um justo motivo,
sem dúvidas. Porém, acabou por desconsiderar muitas outras situações concretas,
como a dos psicopatas, que não serão mais enquadrados como absolutamente
incapazes no sistema civil. Será necessário um grande esforço doutrinário e
jurisprudencial para conseguir situá-los no inciso III do
art. 4º do Código Civil, tratando-os
como relativamente incapazes. Não sendo isso possível, os psicopatas serão
considerados plenamente capazes para o Direito Civil.
Em
matéria de casamento também podem ser notadas alterações importantes engendradas
pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. De início, o art. 1.518 doCódigo Civil teve sua
redação modificada, passando a prever que, até a celebração do casamento, podem
os pais ou tutores revogar a autorização para o matrimônio. Não há mais menção
aos curadores, pois não se decreta mais a nulidade do casamento das pessoas que
estavam mencionadas no antigo art. 1.548, inciso I, ora revogado. Enunciava o
último diploma que seria nulo o casamento do enfermo mental, sem o necessário
discernimento para a prática dos atos da vida civil, o que equivalia ao antigo
art. 3º, inciso II, do Código Civil, que também
foi revogado, como visto. Desse modo, perdeu sustentáculo legal a possibilidade
de se decretar a nulidade do casamento em situação tal. Em resumo, o casamento
do enfermo mental, sem discernimento, passa a ser válido. Filia-se totalmente à
alteração, pois o sistema anterior presumia que o casamento seria ruim para o
então incapaz, vedando-o com a mais dura das invalidades. Em verdade, muito ao
contrário, o casamento é via de regra salutar à pessoa que apresente alguma
deficiência, visando a sua plena inclusão social.
Seguindo
no estudo das modificações do sistema de incapacidades, o art. 1.550 doCódigo Civil, que trata da
nulidade relativa do casamento, ganhou um novo parágrafo, preceituando que a
pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbil poderá contrair
matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável
ou curador (§ 2º). Trata-se de um complemento ao inciso IV da norma, que prevê
a anulação do casamento do incapaz de consentir e de manifestar de forma
inequívoca a sua vontade. Advirta-se, contudo, que este último diploma somente
gerará a anulação do casamento dos ébrios habituais, dos viciados em tóxicos e
das pessoas que, por causa transitória ou definitiva, não puderem exprimir sua
vontade, na linha das novas redações dos incisos II e III do art. 4º da
codificação material.
Como
decorrência natural da possibilidade de a pessoa com deficiência mental ou
intelectual se casar, foram alterados dois incisos do art. 1.557, dispositivo
que consagra as hipóteses de anulação do casamento por erro essencial quanto à
pessoa. O seu inciso III passou a ter uma ressalva, eis que é anulável o
casamento por erro no caso de ignorância, anterior ao casamento, de defeito
físico irremediável que não caracterize deficiência ou de moléstia grave e
transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco a saúde do
outro cônjuge ou de sua descendência (destacamos a inovação).
Em
continuidade, foi revogado o antigo inciso IV do
art. 1.557 do CC/2002 que
possibilitava a anulação do casamento em caso de desconhecimento de doença
mental grave, o que era tido como ato distante da solidariedade (“a ignorância,
anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua natureza, torne
insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado”).
Essas
foram as modificações percebidas na teoria das incapacidades, que foi
revolucionada, e em sede de casamento. No nosso próximo artigo, a ser publicado
neste canal, demonstraremos as alterações geradas pela Lei 13.146/2015 quanto à
interdição e à curatela e os atropelamentos legislativos frente ao Novo CPC.
Advogado e consultor em São Paulo.
Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
Professor do programa de mestrado e doutorado da FADISP. Professor dos cursos
de graduação e pós-graduação da EPD, sendo coordenador dos últimos. Professor
da Rede LFG. Autor da Editora...
FONTE: JUSBRASIL
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