Veículos utilizados no crime ganham finalidade social
ESPECIAL
A Lei 11.343/06, chamada Lei de Drogas, trouxe um
ganho muito prático para o poder público no combate ao tráfico de
entorpecentes. Se antes da lei o destino comum dos veículos apreendidos com os
traficantes era virar sucata nos pátios das unidades da polícia, à espera da
instauração da ação penal, depois dela os órgãos e entidades que atuam na
prevenção e na repressão ao tráfico podem utilizar esses bens ainda no curso do
inquérito.
Carros
de luxo, aeronaves e embarcações podem ser aproveitados pelas autoridades em
favor da sociedade, desde que comprovado o interesse público ou social e desde
que o juízo competente assim autorize, conforme preveem os artigos 61 e 62 da lei.
Pode
causar estranheza perceber, por exemplo, que a Polícia Federal (PF) está
utilizando o veículo de um particular para desenvolver suas atividades.
Entretanto, essa foi a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) já em
2008, proferida monocraticamente em inquérito pelo ministro Paulo Gallotti,
hoje aposentado.
O
inquérito cuidava da Operação Pasárgada, em que a PF apurava a prática de
infrações penais cometidas por prefeitos, advogados, servidores públicos,
magistrados e outras pessoas que pretendiam obter vantagem econômica com o
desbloqueio de recursos do Fundo de Participação dos Municípios.
O
Ministério Público Federal (MPF) queria que o ministro reconsiderasse a decisão
que indeferiu a utilização dos veículos e aeronaves apreendidos pela PF e
determinou sua restituição aos proprietários em razão da dificuldade de
mantê-los nos pátios da polícia.
Benefício da sociedade
O
MPF afirmou que “se os veículos (aí incluídas as aeronaves), por sua própria
natureza, deterioram-se com ou sem uso, nada mais razoável que continuem à
disposição da Justiça e, como tal, sejam utilizados em finalidades sociais do
estado, como a repressão à criminalidade, controle de incêndios e salvamento de
vidas”.
Gallotti
reconsiderou sua primeira decisão e deferiu o emprego dos carros e aeronaves
pela Polícia Federal, pelo Corpo de Bombeiros Militar de Minas Gerais e pelo
Instituto Estadual de Florestas, visto que seriam empregados em atividades
“voltadas à segurança pública, defesa social, monitoramento ambiental e transporte
de órgãos”. Ressaltou ainda que o uso dos veículos em tais atividades evitaria
sua deterioração pela falta de uso, “como é próprio em equipamentos dessa
natureza”.
Entendimento ratificado
O
entendimento aplicado em 2008 foi confirmado em recente julgamento feito pela
Sexta Turma, no REsp 1.420.960, de relatoria do ministro
Sebastião Reis Júnior. O recurso é um desdobramento também da Operação
Pasárgada e foi apresentado por um dos empresários investigados, inconformado
com a utilização de sua aeronave pelo Instituto Estadual de Florestas de Minas
Gerais.
Ele
alegou que não havia prova da origem ilícita do avião e que poderia ser nomeado
depositário do bem. Afirmou ainda que a utilização da aeronave pelo poder
público seria ilegal, visto que não era possível aplicar analogicamente a Lei
de Drogas ao caso.
A
turma negou a devolução do avião ao proprietário. O ministro Sebastião Reis
Júnior afirmou que o Código de Processo Penal (CPP) não estabelece a
necessidade de que o próprio réu seja o depositário dos bens. O relator lembrou
que o Tribunal Regional da 1ª Região (TRF1) concluiu que não foi comprovada de
maneira cabal a origem lícita da aeronave, entendimento que não poderia ser
modificado, pois demandaria reexame das provas, o que é vedado pela Súmula 7 do
STJ.
O
ministro também argumentou que o artigo 3º do CPP admite o uso da analogia.
Além disso, ressaltou que a exigência de haver interesse público ou social,
contida na Lei 11.343, foi atendida, já que se evitaria a deterioração do bem
apreendido.
Apenas indícios
No
fim de 2014, o ministro Sebastião Reis Júnior julgou oRMS 46.796 seguindo a jurisprudência da
corte. O caso envolveu a apreensão de um veículo Vectra que, conforme os autos,
era empregado na entrega de drogas. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
(TJRS) autorizou a utilização do carro pelo delegado de polícia responsável
pelas investigações.
Insatisfeita
com a decisão do tribunal gaúcho, a dona do veículo apresentou recurso em
mandado de segurança no STJ. Com o objetivo de reaver seu automóvel,
alegou que a apreensão e a utilização pela autoridade policial foram baseadas
apenas em indícios. Sustentou que o carro não foi adquirido com recursos
ilícitos, que não era usado para o tráfico e que as drogas foram encontradas no
interior de sua residência.
De
acordo com o relator, o TJRS agiu corretamente ao decidir que, “havendo
indícios da utilização do bem na prática do crime de tráfico de drogas, a
apreensão e a autorização do uso encontram amparo nas regras contidas nos
artigos 61 e 62da Lei 11.343”. O ministro confirmou a posição do tribunal
gaúcho segundo a qual a demonstração da origem lícita do veículo, bem como da
não utilização para o tráfico, “poderá ser feita no curso do processo e deverá
ser considerada na decisão que puser fim à demanda criminal”.
Crime ambiental
Nos
crimes praticados contra o meio ambiente, regulados pela Lei
9.605/98 e pelo Decreto 6.514/08, a jurisprudência do STJ é no
sentido de que “a apreensão dos produtos e instrumentos utilizados para a
prática da infração não pode dissociar-se do elemento volitivo, ou seja, se não
forem devidamente comprovadas a responsabilidade e a má-fé do proprietário do
veículo na prática do ilícito, torna-se improcedente a pena de aplicação de
perdimento de bens”, como afirmou o ministro Humberto Martins no REsp 1.526.538.
O
recurso julgado foi do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama), que
apreendeu um caminhão por transportar madeira de espécies diferentes daquelas
descritas na guia florestal. O caminhão foi liberado pelo TRF1. De acordo com o
colegiado, o veículo não se destinava exclusivamente ao transporte de madeira e
não ficou comprovada a intenção do proprietário de contribuir com o ilícito.
O
TRF considerou ainda que não era razoável que o transportador tivesse
conhecimentos técnicos para distinguir espécies florestais e por isso o nomeou
fiel depositário do bem.
A
decisão gerou recurso do Ibama para o STJ, que confirmou a posição do TRF.
Segundo o ministro Humberto Martins, relator do caso, as instâncias ordinárias,
após analisar fatos e provas, decidiram conforme a jurisprudência do STJ. O
veículo apreendido por suposta infração ambiental foi liberado porque não ficou
comprovado nos autos o “uso específico e exclusivo em atividades ilícitas voltadas
à agressão do meio ambiente” nem a intenção do proprietário de transportar
madeira de forma irregular.
Prova de má-fé
Essa
posição também se aplica aos casos de crimes de descaminho ou contrabando, como
decidido no REsp 1.290.541. O caso envolveu empresa de
turismo contratada para transportar passageiros do Rio de Janeiro para Foz do
Iguaçu. Segundo o processo, no retorno ao Rio, o ônibus da empresa foi
vistoriado por auditores da Receita Federal, que constataram que os passageiros
haviam adquirido mercadorias em quantidade superior à permitida. As mercadorias
foram apreendidas pelos auditores, que decretaram também a pena de perdimento
do ônibus.
O
fato originou ação de anulação de ato administrativo por parte do proprietário
do ônibus, também dono da empresa de turismo. O Tribunal Regional Federal da 2ª
Região (TRF2) confirmou a sentença que liberou o veículo e nomeou o
proprietário fiel depositário do bem. De acordo com o tribunal, não havia como
comprovar o envolvimento da empresa na prática do descaminho, pois não
vislumbraram indícios suficientes de que o proprietário fosse o responsável
pelas mercadorias transportadas sem cobertura fiscal.
No
STJ, a Fazenda Nacional sustentou que houve violação daLei 10.833/03 e que o objetivo da lei é
combater de forma rigorosa o descaminho e o contrabando, de maneira que a
responsabilidade pela infração não recaia apenas sobre o condutor, “pois, via
de regra, os veículos que transportam essas mercadorias irregulares são
conduzidos por terceira pessoa”. A Fazenda pretendia que houvesse o pagamento
de multa para a liberação do veículo.
Entretanto,
o ministro Mauro Campbell Marques entendeu que o TRF2 julgou de acordo com a
jurisprudência do STJ, no sentido de não ser aplicável a pena de perdimento de
bens “quando não forem devidamente comprovadas, por meio de regular processo
administrativo, a responsabilidade e a má-fé do proprietário do veículo na
prática do ilícito”.
O
entendimento pode ser observado ainda no Agravo de Instrumento 1.149.971, de relatoria da
ministra Eliana Calmon (já aposentada), julgado no fim de 2009. Nele, a
ministra afirma que a pena de perdimento de veículo, “utilizada em contrabando
ou descaminho, somente é aplicada se demonstrada a responsabilidade do
proprietário na prática do delito”.
Assim,
“ausente a má-fé no caso concreto, inaplicável tal pena”, afirmou o ministro
Humberto Martins ao julgar o REsp 1.116.394, relativo a veículo envolvido na
prática de contrabando, cuja proprietária teve a boa-fé comprovada.
http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/Ve%C3%ADculos-utilizados-no-crime-ganham-finalidade-social
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