ESPECIAL - Precariedade do sistema carcerário multiplica conflitos judiciais
País com a quarta maior população
carcerária do mundo (548 mil pessoas), o Brasil só é superado pelos Estados
Unidos, China e Rússia. A informação é do Departamento Penitenciário Nacional
(Depen), do Ministério da Justiça, e não leva em conta aproximadamente 150 mil
pessoas que estão em prisão domiciliar. Somado esse grupo, a estatística lança
o país para a terceira colocação.
O Depen já estima que, se for
aprovada a redução da maioridade penal para 16 anos, os cerca de 19 mil
adolescentes internados deverão duplicar ou triplicar a curto prazo,
aprofundando o déficit de vagas, que em 2014 já chegava a 354 mil, segundo dados do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
A decadência do sistema carcerário
brasileiro não atinge somente os internos; seus efeitos se estendem por todo o
Poder Judiciário. O que deveria ser a etapa final do processo, a execução da
pena pode se tornar tormentosa a ponto de gerar novos e novos conflitos
judiciais. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já enfrentou diversas demandas
geradas pela superlotação, pela falta de vigilância e pelo desrespeito ao
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana.
Suspensão das
execuções
Em 2009, os juízes atuantes nas varas
de execução penal do Rio Grande do Sul, durante encontro realizado em Porto
Alegre, decidiram que seria suspensa a expedição de mandados de prisão de
natureza criminal nas comarcas em que houvesse estabelecimento prisional
interditado ou superlotado, “salvo condenação por crime hediondo ou equiparado
ou na iminência de prescrição”.
Essa deliberação dos juízes fez com
que chegassem ao STJ diversos processos nos quais se discutia a possibilidade
de suspensão das execuções. Em 2010, o então desembargador convocado Celso
Limongi refletiu sobre a questão na MC 17.123. Na
decisão, o magistrado ponderou que “o recolhimento do condenado à prisão sem
que lhe possam ser oferecidas, além da individualização da pena, as garantias
reservadas por lei ao condenado configura, sem dúvida alguma, constrangimento
ilegal”.
O caso tratava de um condenado por
furto qualificado. O juiz da execução deixou de expedir o mandado de prisão
porque o presídio de Camaquã (RS) estava interditado e as demais unidades
gaúchas, superlotadas. No STJ, o Ministério Público estadual pedia que o
condenado fosse recolhido à prisão.
Ao negar a cautelar, Limongi
salientou a “histórica omissão e a necessidade de se exigir do Poder Executivo
do estado a construção de novos estabelecimentos prisionais”. O magistrado
ainda destacou que as garantias da Lei de Execução Penal, em especial aquelas
relacionadas à dignidade do preso, previstas no artigo 88, constituem exigência não apenas
da lei, mas do direito.
Pedágio-masmorra
Se é dever legal do estado garantir
condições dignas para o cumprimento da pena, caberia indenizar por dano moral o
preso submetido a situação degradante em um presídio superlotado? Em 2012, a
Primeira Seção julgou o EREsp 962.934 e
decidiu, por cinco votos a três, que não é aceitável essa responsabilização
civil do estado.
A questão chegou à seção por conta da
divergência entre as turmas do STJ que analisam matéria de direito público: a
Primeira Turma admitia a indenização, enquanto a Segunda Turma rechaçava o que
o ministro Herman Benjamin chamou de “pedágio-masmorra” ou “bolsa-indignidade”
(REsp 962.934). Os
embargos de divergência (tipo de recurso para pacificar o entendimento da
corte) foram apresentados pela Defensoria Pública da União.
No caso, o preso dizia que era
obrigado a suportar “insalubridade e ausência de área mínima vital” no
Estabelecimento Penal Masculino de Corumbá (MS). O juiz e o Tribunal de Justiça
haviam reconhecido o direito à indenização e fixado o valor em R$ 3 mil.
Em seu voto, o ministro Benjamin não
considerou razoável indenizar individualmente um preso, o que acabaria por
provocar a redução dos recursos disponíveis para melhoria do sistema e,
portanto, agravaria a situação do próprio detento. Para Benjamin, não há lógica
em punir o estado dessa maneira, nem mesmo invocando uma suposta função
“pedagógica”.
Esse entendimento prevaleceu na seção.
“A situação do sistema prisional é grave e merece solução global, não apenas
pontual”, avaliou Herman Benjamin.
Mau serviço
Em diversos tribunais do país, já foi
reconhecida a responsabilidade civil objetiva do estado diante do assassinato
de presos em cadeias ou presídios sob o argumento de que em tais hipóteses
houve mau funcionamento do serviço, independentemente de culpa do agente
administrativo.
No julgamento do REsp 713.682, a
Segunda Turma, seguindo o voto do relator, ministro João Otávio de Noronha,
admitiu que o estado responde objetivamente pela morte de detento provocada por
outros presidiários dentro do estabelecimento prisional. Nesse julgamento,
Noronha invocou a teoria do risco administrativo, sendo desnecessário discutir
se o poder público agiu ou não de forma culposa.
“Se o estado não possui um sistema
penitenciário adequado e não consegue nem sequer manter satisfatoriamente a
segurança dos detentos, responsabiliza-se de forma objetiva pelos danos
inseridos nesse contexto”, frisou o ministro Noronha.
Em 2007, a Primeira Turma do STJ
analisou caso em que não ficou esclarecido se houve homicídio praticado por
agentes ou por detentos, ou ainda se teria sido suicídio. Ainda assim,
confirmou a condenação do estado de Goiás ao pagamento de indenização por danos
morais de R$ 10 mil e pensão mensal aos familiares do condenado, encontrado
morto dentro do estabelecimento prisional (REsp 847.687).
O relator do recurso, ministro José
Delgado, já aposentado, esclareceu que a posição é semelhante àquela que se
adota em casos de responsabilidade por outros serviços prestados pelo estado à
sociedade. Ele chamou a atenção para a obrigação estatal de zelar pelos
princípios da dignidade humana e da valorização da cidadania.
Durante o julgamento, o ministro
Teori Zavascki, que desde 2012 atua no Supremo Tribunal Federal (STF), comentou
que a responsabilidade do estado não pode ser afastada mesmo em caso de
suicídio. “O estado tem o dever de proteger os detentos, inclusive contra si
mesmos”, afirmou.
Segundo Zavascki, cabe ao estado
impedir que o detento tenha acesso a meios de praticar um atentado contra a
própria vida. “Os estabelecimentos carcerários são, de modo geral, feitos para
impedir esse tipo de evento. Se o estado não consegue impedir o evento, ele é o
responsável”, concluiu.
Culpa in
vigilando
Em maio passado, a Segunda Turma
aplicou a tese para definir a responsabilização pela morte de um jovem interno
no Centro Socioeducativo de Juiz de Fora (MG). No REsp 1.435.687, o
ministro Humberto Martins lembrou que, como a responsabilidade é objetiva, não
se deve buscar a culpa, se integralmente do estado ou concorrente, como fez o
tribunal estadual, que acabou reduzindo à metade a indenização fixada pelo juiz
de primeiro grau. No STJ, os pais do menor conseguiram restabelecer os R$ 25
mil por danos morais determinados na sentença.
Anos antes, em 2003, a Primeira
Turma, em recurso relatado pelo ministro Luiz Fux, atualmente no STF,
reconheceu o direito de indenização em favor dos familiares de um preso que
cometeu suicídio no interior de uma delegacia (REsp 466.969). A
vítima havia sido presa em flagrante por furto. O estado do Rio Grande do Norte
alegava não ser o responsável pela morte (ausência de nexo causal), pois teria
havido culpa exclusiva da vítima.
O ministro Fux afirmou que houve
culpa in vigilando, o que atrai a responsabilidade do estado. A
autoridade policial deveria ter assegurado a incolumidade física do preso, de
forma que impedisse fatalidades como a que ocorreu.
Regime menos
gravoso
O sistema de execução brasileiro
adota a progressividade da pena, um processo paulatino de capacitação do preso
à convivência social, com etapas a serem cumpridas visando à readaptação e à reinserção
do preso na sociedade. Mas, constatada a ausência das condições necessárias ao
cumprimento da pena no regime fixado pela decisão condenatória, o STJ vem
admitindo, excepcionalmente, que se conceda regime menos gravoso.
Ambas as turmas que tratam de direito
penal já firmaram entendimento de que a superlotação e a precariedade do
estabelecimento equivalem à ausência de condições adequadas ao cumprimento da
pena.
No HC 288.026, a
Sexta Turma concedeu habeas corpus para colocar em prisão domiciliar um preso
do regime aberto por falta de estabelecimento compatível com o regime no local
de execução da pena. O ministro Rogerio Schietti Cruz explicou que a ausência
de condições necessárias pode ser caracterizada por superlotação, precariedade
das instalações e falta de vagas ou de estabelecimento compatível.
Ao julgar o RHC 52.315, o
ministro Schietti esclareceu que, se não há vaga no regime próprio, deve ser
assegurado o regime menos rigoroso; se persiste neste a falta de vaga, que ela
seja buscada no regime seguinte, podendo-se chegar à prisão domiciliar, até que
se abra a vaga.
Quanto ao monitoramento eletrônico em
caso de prisão domiciliar, em geral fica para o juízo de execuções avaliar sua
necessidade. Porém, no HC 300.786, o
ministro Gurgel de Faria, da Quinta Turma, entendeu que o preso deveria ser
submetido ao monitoramento eletrônico e determinou de pronto o uso da
tornozeleira.
A ministra Maria Thereza de Assis
Moura reconhece que há constrangimento ilegal quando, por culpa do estado, o
condenado em regime aberto não vem cumprindo a pena em estabelecimento adequado
para tal regime (HC 216.828). No
caso, a ministra decidiu pela colocação do condenado em prisão domiciliar até
que fosse resolvida a pendência, “em homenagem aos princípios da dignidade da
pessoa humana, da humanidade e da individualização da pena”, disse.
Ressocialização
Em recente julgamento, o ministro
Sebastião Reis Júnior classificou de calamitosa a situação atual do sistema
prisional do país, “com cadeias superlotadas e em condições degradantes. Os
presos acabam voltando ao convívio social da mesma forma como entraram no
sistema ou até piores”, disse o magistrado em seu voto no REsp 1.518.689.
O ministro apontou a necessidade de adoção
de medidas que efetivamente promovam a recuperação do detento. Ele lembrou que
a Lei de Execução Penal (LEP)
tem dois eixos – punir e ressocializar –, e a educação é uma das formas mais
eficazes de recuperar o preso.
Em 2011, a Lei 12.433 deu nova
redação ao artigo 126 da
LEP e, seguindo o que o STJ já aplicava, passou a considerar para fins de
remição de pena tanto o trabalho quanto o estudo. E, neste mês de junho, pela
primeira vez, o STJ reconheceu a possibilidade de remição da pena pela leitura
(HC 312.486).
Ao relatar esse caso, Sebastião Reis
Júnior destacou a existência de uma portaria conjunta assinada
em 2012 pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Depen para disciplinar o
Projeto da Remição pela Leitura no Sistema Penitenciário Federal. Além disso, a Recomendação 44 do
CNJ trata do mesmo tema.
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