“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

O risco dos atalhos no caminho para a universidade

ESPECIAL

O ingresso precoce de estudantes na universidade tem gerado grande número de processos judiciais. A Lei 9.394/96, conhecida como Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), estabelece a conclusão do ensino médio como requisito para ingressar em curso superior, mas são muitos os alunos que conseguem passar no vestibular antes disso e buscam o Poder Judiciário para assegurar o direito à matrícula.
Mais tarde, já durante a faculdade, a matrícula pode ser posta em xeque. Em alguns casos, a aplicação da teoria do fato consumado socorre o estudante. Outras vezes, a tentativa de chegar mais cedo ao diploma universitário acaba se revelando uma grande frustração.

Recentemente, a Universidade de Brasília (UnB) adotou uma medida polêmica ao exigir o comprovante de conclusão do ensino médio no ato da inscrição para o vestibular. Antes, a apresentação do diploma se dava somente no ato da matrícula.
De acordo com a instituição, a regra foi adotada por recomendação do Ministério Público do Distrito Federal para garantir o cumprimento da LDB. Afirmou, ainda, ser uma tentativa de inibir a conclusão irregular do curso por meio de exames supletivos.
Dados da própria UnB apontam que 490 estudantes aprovados em vestibular antes da conclusão do ensino médio regular entraram na universidade no segundo semestre de 2014 por força de liminares judiciais. Isso representou 12% dos inscritos.
Os estudantes fizeram um abaixo-assinado em que pediram à UnB que cancelasse a nova regra. Segundo eles, a exigência não encontra respaldo na legislação, e nenhuma outra universidade no Brasil cobra esse certificado para a participação no certame.
O documento afirma ainda que a exigência da UnB foi uma forma de burlar o Poder Judiciário, que vinha dando decisões favoráveis a estudantes que passaram no vestibular sem ter concluído o ensino médio.
Fato consumado
Nos casos de aprovação em vestibular sem a conclusão do ensino médio, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), sempre que possível, vem aplicando a teoria do fato consumado para evitar prejuízo aos estudantes.
Em julho de 2007, um aluno passou no vestibular para o curso de engenharia mecatrônica da Universidade Federal de Uberlândia, mas sua matrícula foi recusada porque não havia concluído ainda o ensino médio, embora tivesse frequência e notas suficientes para ser aprovado (REsp 1.244.991).
O estudante impetrou mandado de segurança e, em segunda instância, conseguiu liminar para assegurar a matrícula. Durante o processo, ele apresentou o certificado, mas mesmo assim a sentença negou a segurança. O Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) reformou a decisão por entender possível a entrega do documento no curso do processo judicial.
De acordo com o tribunal, o candidato aprovado em regular processo seletivo para ingresso no ensino superior deve ter assegurado o direito à matrícula se apresentar o certificado de conclusão do nível médio antes de a sentença ser proferida, como ocorreu no caso.
A universidade recorreu ao STJ alegando ofensa à LDB. O recurso foi julgado em 2011. O STJ aplicou a teoria do fato consumado, visto que o aluno já havia concluído o ensino médio, e a matrícula havia sido deferida pela universidade em 2008 em virtude do acórdão do TRF1.
Idade mínima
Ag 997.268 tratou do caso de um estudante que havia passado no vestibular, mas não tinha a idade mínima de 18 anos para fazer o exame supletivo e tirar o certificado de conclusão do ensino médio. O ministro Herman Benjamin foi o relator do recurso, que discutia especificamente os artigos 37 e 38 da LDB.
No caso, o Tribunal de Justiça da Bahia (TJBA) concluiu que a exigência da idade mínima de 18 anos para o supletivo de nível médio era razoável, pois esse exame visa exclusivamente a dar oportunidade aos jovens e adultos atrasados nos estudos, de modo que possam recuperar o tempo perdido. O ensino supletivo é previsto pelo artigo 38, parágrafo 1º, da LDB.
Entretanto, para o TJBA, se o estudante, mesmo em idade precoce e ainda por concluir o ensino médio, presta vestibular e obtém sucesso, revela capacidade e maturidade suficientes, razão pela qual foi concedida liminar para lhe garantir o direito de realizar o exame supletivo.
Durante o processo, o estudante atingiu a idade mínima exigida e preencheu o requisito legal que lhe faltava, o que ensejou a aplicação da teoria do fato consumado. “O retorno ao status quo ante se mostra contrário ao senso de justiça quando, além de evidenciada a maturidade e a capacidade do estudante, todos os requisitos exigidos foram cumpridos no curso da demanda”, decidiu o TJBA.
Para Herman Benjamin, o tribunal de origem, em consonância com o entendimento firmado pelo STJ, acertou ao não reformar a sentença que havia concedido a segurança ao estudante, porque “mediante liminar lhe foi deferido o direito de realizar os exames supletivos do ensino médio e, durante o tramitar do feito, veio a completar a idade mínima exigida”.
O relator concluiu que, em hipóteses excepcionais como essa, é preciso fazer uma ponderação entre a situação fática consolidada e os princípios jurídicos em questão, para que “o estudante beneficiado com o provimento judicial favorável não seja prejudicado pela posterior desconstituição da decisão que lhe conferiu o direito pleiteado inicialmente”.
Aluno reprovado
A teoria do fato consumado nem sempre pode ser aplicada, como ocorreu no julgamento do REsp 1.394.719. O STJ negou pedido para que um aluno, reprovado em três disciplinas do ensino médio, pudesse se valer da aprovação em exame supletivo para ingressar na faculdade.
A Segunda Turma entendeu que a idade mínima para o supletivo, em regra, deve ser respeitada, e essa modalidade de ensino não se aplica a menores que queiram burlar o processo educacional de modo a encurtar o caminho para a universidade.
O aluno, à época menor de 18 anos, foi reprovado em biologia, física e português e recorreu ao supletivo como forma de concluir o ensino médio.
Amparado por liminar judicial, ele fez o exame mesmo sem a idade mínima. Foi aprovado e se matriculou no curso de computação de uma universidade particular do Distrito Federal, do qual chegou a cursar cinco semestres. No STJ, argumentou que seu caso deveria ser julgado à luz da teoria do fato consumado.
Porém, a Segunda Turma não entendeu dessa maneira. Para o relator, ministro Mauro Campbell Marques, a permissão para que estudante menor de idade faça o exame supletivo é medida excepcional, que só pode ser concedida em “raríssimos casos”, quando ele comprova capacidade e maturidade intelectuais suficientes para estar na universidade – o que não se pode dizer de quem é reprovado em três disciplinas no ensino regular.
“Entender de modo contrário é admitir que a reprovação no ensino regular de quem está na idade legal adequada poderia ser ignorada e superada pelo supletivo, burlando o sistema educacional”, afirmou o ministro.
Além disso, para Campbell, mesmo que superado tal óbice, o tribunal de origem concluiu que “não houve considerável decurso de tempo entre a data da concessão do provimento liminar (fevereiro de 2011) e a produção da sentença (setembro de 2011) a ponto de consolidar situação fática”.
Segundo o relator, a teoria do fato consumado só tem aplicação em casos muito excepcionais, quando a morosidade do Judiciário faz com que determinada situação jurídica decorrente de liminar se consolide de tal forma que sua eventual desconstituição causaria grave prejuízo à parte.
Enem
Ao julgar o RMS 43.629, a Segunda Turma negou a pretensão de um estudante que não havia atingido a pontuação mínima exigida no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para obter o certificado de conclusão. Ele recorreu ao STJ contra decisão do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul (TJMS) que negou seu mandado de segurança.
O estudante alegou ter direito líquido e certo à expedição do certificado de conclusão do ensino médio, com base na teoria do fato consumado, já que, aprovado em vestibular e apoiado em uma decisão liminar, estava cursando pedagogia desde o início de 2013.
Ao analisar o caso, o relator, ministro Humberto Martins, concluiu pela não aplicação da teoria do fato consumado, uma vez que não houve o necessário transcurso de longo prazo. O aluno ingressou na universidade no primeiro semestre de 2013, e o recurso foi pautado para julgamento no início do segundo semestre do mesmo ano.
Quanto ao Enem, Humberto Martins destacou que o Estado de Mato Grosso do Sul editou resolução para disciplinar a expedição de certificado do ensino médio, pelas escolas credenciadas, aos participantes do Enem que solicitassem a certificação no ato da inscrição, mas para isso o aluno teria de preencher alguns requisitos, entre eles atingir o mínimo de 450 pontos em cada uma das áreas de conhecimento do exame e 500 pontos na prova de redação.
Projetos
A questão dos alunos que conseguem aprovação no vestibular antes da conclusão do ensino médio também gera muito debate no Poder Legislativo.
Em 2013, a Comissão de Educação da Câmara dos Deputados rejeitou o Projeto de Lei 6.834/10, do deputado Sebastião Bala Rocha (PDT-AP), que autorizava matrícula em universidade aos estudantes que passassem no vestibular tendo concluído apenas o segundo ano do ensino médio.
Pelo projeto, eles poderiam cursar, simultaneamente, o primeiro ano da faculdade e o último ano do ensino médio. A proposta alterava a LDB, que atualmente só permite o ingresso nas universidades para os estudantes que concluíram o ensino médio.
A comissão concluiu que o projeto, aparentemente justo, geraria mais prejuízos do que vantagens aos estudantes, já que ficariam sobrecarregados com duas jornadas de estudos – o final do ensino médio e o começo da graduação.
O projeto tramitava em conjunto com os PLs 2.157/11 e 4.870/12, sobre o mesmo assunto, em caráter conclusivo. Como foram rejeitados na única comissão de mérito, os projetos serão arquivados, a menos que haja recurso de, no mínimo, 53 deputados para levar a votação ao plenário.
Outros dois projetos de lei sobre o tema ainda tramitam na Câmara.
O PL 690/15, do deputado Beto Rosado (PP-RN), altera o artigo 44 da LDB para admitir a matrícula em curso de graduação de estudante que, ainda cursando o ensino médio, tenha sido aprovado em processo seletivo e obtido pontuação no Enem que o habilite ao certificado de conclusão desse nível de ensino.
Já o PL 1.298/15, do deputado Luciano Ducci (PSB-PR), acrescenta parágrafo ao artigo 36 da LDB para disciplinar a concessão de certificado de conclusão do ensino médio.
Se aprovado, o projeto concederá o certificado para os alunos que, independentemente da idade, tenham cursado pelo menos 50% da carga horária correspondente ao terceiro ano do ensino médio e forem aprovados no vestibular antes da conclusão do curso ou no Enem.

http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/O-risco-dos-atalhos-no-caminho-para-a-universidade

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