O particular na mira da Lei de Improbidade
ESPECIAL
O
Brasil sempre foi palco de escândalos envolvendo atores que fizeram mau uso de
dinheiro público e até mesmo enriqueceram de forma ilícita. Mais do que em
qualquer outro momento da história do país, o assunto improbidade
administrativa está em evidência. E os personagens desse espetáculo de
ilegalidades nem sempre são agentes públicos. Por isso mesmo que a Lei de
Improbidade Administrativa (LIA) responsabiliza também o particular que induza
ou concorra para a prática do ato ilícito ou dele se beneficie sob qualquer
forma, direta ou indireta.
Apesar
disso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem considerado
que, embora o particular esteja sujeito às penalidades da Lei
8.429/92, não pode responder em ação de improbidade sem que haja
a participação de um agente público no polo passivo da demanda (REsp
1.155.992 e REsp
1.171.017).
“Não
havendo participação do agente público, há que ser afastada a incidência da Lei
8.429, estando o terceiro sujeito a sanções previstas em outras disposições
legais”, explicou a ministra Eliana Calmon, já aposentada (REsp
931.135).
Esse
foi o entendimento adotado pela Primeira Turma na última quinta-feira (21) ao
julgar recurso contra o diretor Guilherme Fontes e sua produtora, que receberam
R$ 51 milhões por meio da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisualpara produção do filme “Chatô –
O Rei do Brasil”, baseado na obra de Fernando Morais sobre a vida de Assis
Chateaubriand, fundador dos Diários Associados. Somente agora,
cerca de 20 anos depois, o trailer do filme foi divulgado.
A
maioria dos ministros considerou que, embora os réus tenham supostamente
cometido irregularidades na utilização da verba pública, não se encaixam no
conceito de agente público para fins de aplicação da LIA.
Conceito
O
Ministério Público Federal ajuizou ação de improbidade contra a produtora, o
diretor e sua sócia pela não apresentação do filme no formato pactuado e por
irregularidade da prestação de contas referente aos valores recebidos. As
instâncias ordinárias consideraram que a produção do filme por particular,
ainda que com ajuda financeira pública, não pode ser interpretada como serviço
realizado mediante delegação contratual ou legal do poder público.
No
recurso especial, o MPF combateu o acórdão do Tribunal Regional Federal da 2ª
Região citando precedente (REsp
1.138.523) da Segunda Turma do STJ em que os agentes que
praticaram as condutas ilícitas também eram particulares.
No
julgamento paradigma, os ministros discutiram o conceito de agente público para
aplicação da LIA. Para a relatora, ministra Eliana Calmon, “o alcance conferido
pelo legislador quanto à expressão ‘agente público’ possui expressivo
elastéreo, o que faz com que os sujeitos ativos dos atos de improbidade
administrativa não sejam apenas os servidores públicos, mas, também, quaisquer
outras pessoas que estejam de algum modo vinculadas ao poder público”.
Com
base nesse entendimento, o MPF defendeu que o artigo 1º, parágrafo único, da
Lei 8.429 – segundo o qual estão sujeitos às penalidades da lei os atos
praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou
incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público – poderia ser aplicado ao
caso do diretor Guilherme Fontes.
Divergência
Na
primeira sessão de julgamento, em abril deste ano, a relatora, desembargadora
convocada Marga Tessler, manifestou-se de forma favorável ao MPF. Ela afirmou
que a produtora e os sócios, embora particulares, poderiam ser abarcados no
conceito de agente público e, consequentemente, responder por improbidade
administrativa.
A
ministra Regina Helena Costa manifestou entendimento contrário e negou
provimento ao recurso. Para ela, somente pode ser considerado agente público
quem, por qualquer vínculo, presta serviço público. O julgamento foi
interrompido por pedido de vista do ministro Benedito Gonçalves.
Retomado
o julgamento, ele acompanhou a divergência. Considerou não ser possível alargar
o conceito de agente público previsto da LIA para abarcar particulares que não
estejam no exercício de função estatal, sob qualquer forma de investidura ou
vínculo. Os ministros Sérgio Kukina e Napoleão Nunes Maia Filho também
acompanharam a divergência.
Ações do terceiro
Em Improbidade
Administrativa, Emerson Garcia e Rogério Pacheco esclarecem que a ação
de terceiro pode se desenvolver em três ocasiões distintas: “O terceiro
desperta no agente público interesse em praticar o ato de improbidade,
induzindo-o a tanto; o terceiro concorre para a prática do ato de improbidade,
participação esta que pode consistir na divisão de tarefas com o agente público
ou na mera prestação de auxílio material; o terceiro não exerce qualquer influência
sobre o animus do agente ou presta qualquer contribuição à
prática do ato de improbidade, limitando-se em se beneficiar do produto do
ilícito.”
De
acordo com a ministra Eliana Calmon, se for constatado que o terceiro concorreu
para o ilícito praticado por agente público ou teve conhecimento da origem
ilícita do benefício auferido, estará sujeito às sanções da Lei 8.429.
Ela
esclareceu que a expressão “no que couber”, prevista noartigo 3º,
não afasta a responsabilidade do particular, mas deve ser entendida apenas como
forma de restringir as sanções aplicáveis, “que devem ser compatíveis com as
condições pessoais do agente, afastando-se, por exemplo, a possibilidade de
perda da função pública” (REsp
931.135).
Legitimidade
Em
setembro de 2014, a Segunda Turma deu provimento ao recurso especial de uma
empresa de coleta de lixo para extinguir processo a que respondia com seus
diretores.
O
tribunal de segunda instância havia dado prosseguimento à ação de improbidade
proposta pelo Ministério Público de São Paulo (Resp
1.409.940), que acusou a empresa de ter cometido fraudes na
pesagem do lixo residencial e hospitalar que era coletado.
Em
decisão unânime, os ministros consideraram ser inviável a ação de improbidade
ajuizada exclusivamente contra a sociedade e seus diretores. Para eles, além de
não ser possível enquadrá-los no conceito de agente público da LIA, a
configuração do ilícito dependeria da participação de pessoa integrante da
estrutura administrativa.
“No
tocante à legitimidade passiva na ação de improbidade, a responsabilização do
particular pela prática de ato de improbidade depende da circunstância de ter
participado, concorrido ou se beneficiado de ilícito da mesma natureza
praticado por agente público, nos termos do artigo 3º da Lei 8.429”, afirmou o
relator do recurso da empresa, ministro Og Fernandes.
Exceções
O
ministro considerou que a mera execução de serviço público de coleta de lixo
não caracteriza o contratado e, por consequência, seus diretores como agentes
públicos. “As possibilidades de considerar agente público na esfera privada são
excepcionais, sendo limitadas pela Lei 8.429 aos atos praticados nas entidades
que recebam recursos de ente público para sua criação ou custeio – o que não
inclui verba referente à remuneração contratual”, afirmou.
Og
Fernandes explicou que o conceito de agente público por equiparação, para
responder à ação de improbidade, alcança quem exerce – ainda que
transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação,
contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo – mandato, cargo,
emprego ou função nas entidades descritas no artigo 1º da
LIA.
Apesar
disso, nada impede, disse o relator, que se busque a responsabilização dos
particulares por outros meios legais.
Mesmas sanções
Em
situações nas quais agentes privados concorrem para a prática de ato de
improbidade, eles “são equiparados aos agentes públicos para o fim de melhor
resguardar o destino atribuído à receita de origem pública, estando passíveis
de sofrer as mesmas sanções a estes cominadas e que estejam em conformidade com
a peculiaridade de não possuírem vínculo com o poder público”, ensinam Emerson
Garcia e Rogério Pacheco.
No
mesmo sentido, o ministro Herman Benjamin afirma que todos aqueles que tenham
concorrido para a prática da conduta ímproba são legitimados passivos da ação
civil por ato de improbidade. Ele foi relator do REsp
896.044, julgado pela Segunda Turma. A ação, ajuizada pelo
Ministério Público Federal, tratava de pagamentos indevidos feitos com verba da
Fundação Nacional de Saúde no Pará a duas prestadoras de serviços.
Além
dos servidores envolvidos, a ação foi proposta contra o gerente responsável
pelas empresas. Todos foram condenados em primeira instância. Contudo, o
Tribunal Regional Federal da 1ª Região considerou nula a sentença e determinou
o retorno do processo para citação das empresas e de seus representantes
legais, os quais deixaram de ser demandados pelo MPF sem qualquer
justificativa.
Litisconsórcio
Herman
Benjamin afirmou que a falta de inclusão das empresas no polo passivo não
impede a responsabilização dos agentes públicos e de outros particulares,
“mostrando-se equivocada a anulação da sentença por ausência de formação de
litisconsórcio com as pessoas jurídicas privadas”.
O
ministro mencionou precedente da Primeira Turma, segundo o qual “não há, na Lei
de Improbidade, previsão legal de formação de litisconsórcio entre o suposto
autor do ato de improbidade e eventuais beneficiários, tampouco havendo relação
jurídica entre as partes a obrigar o magistrado a decidir de modo uniforme a
demanda” (REsp
759.646).
No
entanto, observou Herman Benjamin, se é fato que os agentes públicos podem ser
condenados independentemente da responsabilização da empresa favorecida pela
improbidade, o inverso não é verdadeiro: os particulares não podem responder à
ação baseada na LIA se não houver o agente público no polo passivo.
http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/O-particular-na-mira-da-Lei-de-Improbidade
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