A fé na justiça dos homens
ESPECIAL
Fé
é a certeza das coisas que se esperam e a convicção de fatos que não se veem
(Hebreus 11:1). A crença religiosa dispensa lógica e razão. Quem crê, crê e
pronto. É algo que, teoricamente, não se discute. Um direito fundamental
reconhecido pela Constituição de 1988.
Isso
não significa, entretanto, que não existam limites ao que é feito em nome da
liberdade de crença. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), por
exemplo, já encerrou muitas discussões envolvendo atos abusivos praticados sob
o manto da religião.
Um
deles foi o julgamento do HC 268.459, que discutia a responsabilidade criminal de
um casal pela morte da filha, de 13 anos.
A
menina, portadora de anemia falciforme, foi levada ao hospital com uma
crise de obstrução dos vasos sanguíneos. Alertados pelos médicos de que seria
necessário realizar uma transfusão, os pais não autorizaram o procedimento
invocando preceitos religiosos das Testemunhas de Jeová.
Em
primeira instância, os pais foram pronunciados para ir a júri popular, acusados
de homicídio com dolo eventual, decisão mantida em segunda instância.
No
STJ, a Sexta Turma entendeu pelo trancamento da ação penal. Para o colegiado,
os pais não poderiam ser responsabilizados porque, ainda que fossem contra o
procedimento, não tinham o poder de impedi-lo, já que a menina estava
internada. Os médicos é que deveriam ter agido e cumprido seu dever legal,
mesmo diante da resistência da família.
O
julgamento ficou empatado, e como nesses casos a regra é prevalecer a posição
mais favorável, o habeas corpus foi concedido. No acórdão, ficou
registrado o entendimento de que a invocação religiosa deve ser indiferente aos
médicos, que têm o dever de salvar a vida.
Intolerância
Outro
caso de grande repercussão envolveu a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)
e uma mãe de santo da Bahia. A religiosa enfartou depois de ler uma matéria
publicada no jornal Folha Universal, de propriedade da IURD, na
qual era acusada de charlatanismo e de roubar os clientes. A capa do jornal
estampava uma foto da mãe de santo com a manchete:“Macumbeiros
charlatões lesam o bolso e a vida dos clientes”.
A
mãe de santo faleceu dias depois. A família, então, iniciou uma luta judicial
contra a igreja. Em ação por danos morais, a IURD foi condenada ao pagamento de
quase R$ 1 milhão em razão de ofensa ao artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal
(proteção à honra, vida privada e imagem). Além disso, foi condenada também a
publicar uma retratação à mãe de santo na Folha Universal.
No recurso
especial, entretanto, o valor da indenização foi reduzido para R$ 145.250,00. O
desembargador Carlos Fernando Mathias de Souza, então convocado para atuar no
STJ, considerou o valor original exorbitante em relação aos critérios adotados
no tribunal para reparações de cunho moral.
O
episódio inspirou a criação do Dia Nacional de Combate à Intolerância
Religiosa, 21 de janeiro, data da morte da mãe de santo (REsp 913.131).
Dízimos
O
dízimo é a contribuição religiosa do fiel. Ele ocorre tanto em igrejas
evangélicas quanto em católicas e significa a décima parte da renda mensal doada
à igreja como manifestação de fé e gratidão por bênçãos recebidas.
Um
fiel arrependido tentou reaver na Justiça valores colocados no altar da Igreja
Adventista do Sétimo Dia. Para ele, as doações realizadas seriam passíveis de
revogação por ingratidão.
O
caso aconteceu em São Paulo. Após desentendimento com um pastor, o fiel
saiu da igreja e moveu ação de revogação das doações, com pedido de restituição
das quantias.
O
pedido foi julgado improcedente em primeira e segunda instância, e a discussão
chegou ao STJ no REsp 137.1842.O relator, ministro Sidnei Beneti
(hoje aposentado), também não acolheu a argumentação do fiel arrependido.
Beneti
destacou que a palavra doação admite duas interpretações: a doação em sentido
amplo e a doação comonegócio jurídico. Para ele, as contribuições realizadas às
instituições religiosas não se enquadram na definição de doação como contrato
típico, prevista no artigo 538 do Código Civil.
“A
doação lato sensu a instituições religiosas ocorre em favor da
pessoa jurídica da associação, e não da pessoa física do pastor, do padre ou da
autoridade religiosa que a representa. Nesse contexto, a doação não pode ser
revogada por ingratidão, tendo em vista que o ato de um membro –
pessoa física – não tem o condão de macular a doação realizada em benefício da
entidade, pessoa jurídica, como dever de consciência religiosa”, explicou
Beneti.
Casamento anulado
Em
2013, o STJ homologou pela primeira vez uma sentença eclesiástica que anulou um
casamento religioso, confirmada pelo Supremo Tribunal da Assinatura
Apostólica, no Vaticano, com base no acordo firmado entre o Brasil e
a Santa Sé relativo ao Estatuto Jurídico da Igreja Católica no Brasil (Decreto 7.107/10).
O
decreto estabelece que as decisões eclesiásticas confirmadas pelo órgão
superior de controle da Santa Sé são consideradas sentenças estrangeiras, com valor
legal no Brasil. Com a decisão do STJ, os ex-cônjuges passaram de casados para
solteiros, uma vez que a homologação da sentença eclesiástica resultou também
na anulação do casamento em termos civis.
O
pedido de anulação do casamento foi feito pelo marido ao Tribunal Eclesiástico
Interdiocesano de Vitória, após a denúncia de que a esposa abusava sexualmente
dos filhos.
Embora
o acordo com a Santa Sé tenha sido apresentado como decorrente de
relações internacionais entre estados, ele chegou a ser alvo de muitos
questionamentos por envolver o interesse específico de uma religião, num estado
constitucionalmente estabelecido como laico.
Injúria
Em
julgamento realizado na Corte Especial, o STJ diferenciou discriminação
religiosa de injúria qualificada. Uma mulher moveu ação penal privada contra um
promotor que havia testemunhado em processo no qual ela acusava o ex-marido de
atentado violento ao pudor. As vítimas seriam os filhos do casal.
De
acordo com a mulher, o promotor, em seu depoimento, declarou que ela seria
“emocionalmente desequilibrada” e “religiosa fanática da igreja do bispo Edir
Macedo”. Disse ainda que ela havia colocado em sua casa duas empregadas
domésticas da igreja à qual pertence e que de uma delas partiram as
acusações contra o ex-marido.
Para
a mulher, as declarações do promotor teriam sido feitas com o propósito de
desqualificá-la – e também às suas empregadas –, denotando intolerância,
discriminação, preconceito contra membros de segmento religioso e ainda a ideia
de superioridade de quem não pertence àquela igreja.
Por
unanimidade, os ministros rejeitaram a acusação, acolhendo a
argumentação do promotor de que utilizou o termo “fanática” apenas como
sinônimo de comportamento exagerado, sem a intenção de qualificar a religião.
Para
o colegiado, a maneira como o promotor se referiu à igreja frequentada pela
mulher, no contexto dos fatos, não implicou discriminação religiosa, mas uma
declaração pessoal de caráter injurioso, visando a ofensa à honra, e não a
discriminação.
“Se
a intenção for ofender número indeterminado de pessoas ou, ainda, traçar perfil
depreciativo ou segregador de todos os frequentadores de determinada igreja, o
crime será de discriminação religiosa. Contudo, se o objetivo for apenas atacar
a honra de determinada pessoa, valendo-se para tanto de sua crença religiosa –
meio intensificador da ofensa –, o delito em questão é o de injúria
qualificada, nos estritos termos do artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal”,
disse o ministro Castro Meira (já aposentado), relator do processo.
Os
números de alguns processos mencionados no texto não foram divulgados em razão
de segredo judicial.
http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/noticias/noticias/%C3%9Altimas/A-f%C3%A9-na-justi%C3%A7a-dos-homens
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