20 de dezembro de 2014, 8h00
O plural empregado no título deste artigo indica minha opção consciente pela teoria
possibilista como referência teórica para a reflexão aqui proposta. A teoria
possibilista, como uma teoria tripartite das realidades, necessidades e
possibilidades, tal qual apresentada por Peter Häberle[1] , é aquela que permite analisar um mesmo fenômeno sob
diversos pontos devista e
encontrar suas múltiplas razões, versões e propostas de teses.[2]
Tenho compartilhado minhas reflexões constitucionais mais
recentes com Carlos Ayres Britto[3] e já não é novidade que venho propondo um deslocamento da questão do ativismo judicial ,
tema tão debatido nos círculos acadêmicos, para o ativismo constitucional, a
partir de uma afirmação já repetida inúmeras vezes por Ayres Britto: “O
ativismo no Brasil é da Constituição e, não, dos juízes!”.[4]
O
ativismo constitucional é toda ação que tenha como meta realizar a
Constituição, ou mais especificamente, é o conjunto de ações, sempre complexo e
descentralizado, de fazer valer as normas constitucionais jusfundamentais em
todas as práticas de poder, seja pelo administrador público, seja pelo
legislador, seja pelo juiz.
O
deslocamento da discussão sobre ativismo judicial para o ativismo
constitucional propõe olhar a prática ativista como inerente às funções de
poder exercidas há mais de dois séculos no que se tem experimentado como
realidade chamada de Estado constitucional. Assume-se, portanto, o ativismo
judicial como parte integrante e inerente a outras formas de ativismo, como os
ativismos legislativo e administrativo necessários para o exercício das
competências constitucionalmente distribuídas entre as funções de poder.
Assim
sendo, os limites, excessos e potencialidades do ativismo, seja o judicial ou
qualquer outro, podem ser enfrentados a partir da premissa de que somente com o
comprometimento de todos os órgãos de poder e suas competências
constitucionalmente estabelecidas, no jogo democrático, é que será possível
impor os limites e conter eventuais excessos dessa prática que, se monopolizada
por qualquer dos interlocutores, apresenta-se inadequada a qualquer versão de
constitucionalismo.
São
três as propostas de abordagem do fenômeno aqui chamado de ativismo constitucional:
o ativismo constitucional como ideologia; como teoria e como metodologia. Na
verdade, todos são facetas de uma mesma realidade, qual seja, a de que, no
Estado Constitucional, a perspectiva estática do Direito necessariamente tem
que ganhar contornos dinâmicos, pois não mais se admite a dogmática jurídica e
constitucional como aquela exclusiva dos juízes e suas decisões. Todos estão
vinculados e submetidos à Constituição e, já por isso, devem ser ativistas na
exata medida de suas competências constitucionais.
A
premissa central desse raciocínio é que o ativismo dos juízes certamente
repercutirá nos ambientes de atuação do legislador e administrador, os quais
devem movimentar-se, sempre pautados pela Constituição, em ações
concretizadoras dos direitos expressos no texto da Constituição, também com o
intuito de limitar, contrapor ou complementar as ações dos magistrados.
Pressupor
algo diferente, ou seja, de que há um espaço de decisão judicial imune à
interação com os espaços de decisões políticas e administrativas, é fechar os
olhos para a realidade cotidiana de exercício de poder, bem como para as
necessidades e possibilidades apresentadas pela complexa teia constitucional
engendrada desde o final do século XX.
Sob a perspectiva ideológica, o ativismo constitucional propõe a
existência de um fundamento racional para considerar a Constituição como uma
ordem objetiva de valores. A doutrina constitucional já é vetusta ao apontar,
no quadro das possíveis teorias dos direitos fundamentais[5] , a teoria da
ordem de valores como aquela que pressupõe a vinculação de todo o ordenamento
jurídico aos direitos fundamentais.
Assim,
os direitos fundamentais, vistos a partir da ordem de valores, apresentam-se
como pauta de caráter objetivo a irradiar seus efeitos para todos os campos do
saber e do fazer jurídicos, deixando a sua condição clássica de direitos subjetivos
ou de meras pretensões subjetivas.
Também é preciso registrar que os direitos fundamentais,
concebidos como ordem de valores objetiva, dotada de unidade material e na qual
se insere o próprio sistema de pretensões subjetivas, reconduzem a princípios
objetivos através da realização dos quais se alcança uma eficácia ótima deles
próprios, reconhecendo-se ainda um verdadeiro estatuto de proteção aos
cidadãos.[6]
Em
resumo, sob a perspectiva ideológica, o ativismo constitucional seria aquele
inevitavelmente comprometido com a concretização dos direitos fundamentais com
efeitos irradiantes, dirigentes e horizontais para todos os âmbitos da vida jurídica,
exigindo dos ativistas constitucionais (sejam juízes, legisladores,
administradores, órgãos auxiliares da Justiça, ativistas da sociedade civil
organizada, etc) um discurso justificador de suas ações e decisões estritamente
vinculado à tarefa de tornar concretos os princípios jusfundamentais.
Nesse
particular, não se desconhece a crítica quanto ao enfraquecimento dos direitos
fundamentais pela possibilidade de sua banalização em virtude do grande número
de casos concretos envolvendo direitos fundamentais. Porém, também é possível
afirmar que a construção dialética e cooperativa desses direitos pelos mais
diversos atores sociais é a única forma que enfrentar o problema da sua
relativização, pois somente o efetivo controle recíproco será capaz de minimizar
os efeitos negativos da relativização pela concretização individual em casos
específicos.
Assim, ao invés de negar a relevância das críticas formuladas ou
de tentar refutá-las uma a uma, o ativismo constitucional ideológico enfrenta
as suas dificuldades assumindo-as como parte do próprio processo de realização
das normas jusfundamentais. E não é por outro motivo que a postura ativista tem
conduzido a muitas reflexões, especialmente diante do embate que atualmente se
apresenta em evidência entre o constitucionalismo clássico (Estado de direito)
e o chamado neoconstitucionalismo (Estado constitucional).[7]
Em
verdade, tal embate, no plano teórico, representa mais uma tentativa de
superação da dicotomia juspositivismo/jusnaturalismo e, nesse contexto, a
discussão desloca-se da referida dicotomia para como tais escolas do pensamento
jurídico, na contemporaneidade, tem lidado com a concretização do princípio da
dignidade da pessoa humana, ou seja, com os discursos e práticas do humanismo
pós-segunda guerra.
A complexa e multifacetada teoria da dignidade humana apela a
uma referência cultural e social plural, recolhida pragmaticamente de sugestões
filosóficas e doutrinárias de diferentes esferas, com diferentes causas e
consequências.[8] Não pode ser desconsiderada como
métrica hermenêutica inerente ao afazer do intérprete de direitos fundamentais,
necessariamente ocupando lugar de destaque em qualquer proposta teórica que se
diz humanista.
O que
tem notado é que críticos do princípio da dignidade humana se voltam mais para
aos riscos do ativismo judicial — e consequentemente o poder que se acabou por
conceder ao poder judiciário de reconhecer e até de criar direitos fundamentais
— do que com a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana em si.
Ao
propor um giro na reflexão sobre ativismo judicial para uma reflexão sobre
ativismo constitucional pretende-se evitar os excessos da já cansativa
discussão sobre a maléfica concentração de poder na figura dos juízes, para
concentrar esforços na difícil tarefa de se construir uma dogmática
constitucional humanista.
O
ativismo constitucional, no plano teórico, já iniciou seus esforços em dar
suporte ao antídoto para este problema, pois diferentemente das correntes
realistas, o neoconstitucionalismo, não supera o aspecto normativo do
positivismo, porque com ele compartilha a premissa de que direito é
norma (premissa básica do raciocínio de Hans Kelsen). Nem o juiz, nem o
administrador, nem mesmo o legislador pode afastar-se dos comandos normativos
básicos (e aqui, por óbvio, estamos a falar da Constituição como norma suprema)
sem o crivo do devido processo legal substantivo.
Como
reflexos mais específicos dessa novidade para a seara do direito constitucional
podem ser enunciados: i) o deslocamento da teoria dos direitos fundamentais
como direitos subjetivos para a da teoria dos direitos fundamentais como ordem
objetiva de valores constitucionais; e ii) o deslocamento da centralidade
normativa exclusiva da figura do legislador para uma descentralização da
produção normativa também para os demais órgãos que exercem função de poder
(como o Judiciário e o Executivo) e até por atores não-estatais ou
quase-estatais com influência política em seus âmbitos (como entidades e
organizações nacionais e internacionais).
Mas
como fazer isso? O ativismo constitucional, pelo prisma metodológico, propõe
atitude ativista cujas ações e procedimentos metódicos conduzam sempre à
concretização de direitos fundamentais. Ou seja, pela hermenêutica específica
dos direitos fundamentais, a qual pressupõe um raciocínio metódico
irremediavelmente vinculado ao devido processo legal substantivo, é que se
consegue chegar a resultados satisfatórios nesse contexto. Assim, não há como
fugir dos princípios da proporcionalidade ou razoabilidade.
Isso porque, toda concretização de direitos fundamentais implica
um raciocínio metódico que envolve, em alguma medida, restrições, concorrências
ou colisões desses direitos.[9] A afirmação de que não há direitos
fundamentais absolutos decorre exatamente da dinâmica de sua concretização, uma
vez que no amplo universo desses direitos apresenta-se inevitável o confronto
dos âmbitos de proteção de diversos direitos, sejam de um mesmo titular
(concorrência), sejam de titulares diferentes (colisão), o que irá desembocar
em uma ou mais práticas de restrições recíprocas.
Considerando que, no Brasil, não vingou a tese da hierarquia
entre normas constitucionais[10] ,
não há como afastar-se metodologicamente do juízo de ponderação como meio de
tornar concretos os comandos constitucionais. Há controvérsias doutrinárias e
críticas ao método de ponderação como atitude metodológica adequada para a
concretização de direitos fundamentais, porém, continua sendo esta técnica a
que mais se recorre quando direitos fundamentais estão em colisão ou
concorrência, sendo necessária a restrição do âmbito de proteção de um ou mais
direitos envolvidos.
A
atitude ativista, nesse âmbito, implica um ônus argumentativo para justificar
as ações e decisões a serem tomadas, pois sempre que se está diante da
necessidade de reconhecimento da prevalência de um direito fundamental em
detrimento de outro, é preciso construir um discurso fundamentado e convincente
sobre a decisão tomada, não sendo possível assumir a premissa falaciosa de que
somente argumentos jurídicos (e irrefutáveis) estarão em jogo.
Outrossim, os limites das restrições impostas deverão ser
confrontados com o parâmetro do devido processo legal substantivo, ou seja,
pela proporcionalidade — e seus subcritérios da adequação, necessidade ou
proporcionalidade em sentido estrito — ou pela razoabilidade — também com os
seus subcritérios de equidade, congruência e equivalência.[11]
Trata-se de uma metódica complexa, não há como negar, porém o
exercício cotidiano do jurista comprometido com os direitos fundamentais cria
ambiente adequado para experimentar os métodos e procedimentos necessários para
o seu exercício.[12]
Como
conclusão, pode-se dizer que não há como fugir da pedagogia constitucional,
como um espaço necessariamente a ser ocupado com a metódica de aplicação e
racionalização da concretização dos direitos fundamentais, sob a perspectiva da
compreensão (hermenêutica) e da comunicação/linguagem (argumentação), em tempos
de ativismos.
Acredito
que somente com práticas pedagógicas direcionadas para uma construção cultural
— a cultura constitucional — vamos deixar de reproduzir os mesmos equívocos e
refletir sobre as mesmas críticas daqueles que já, há mais de dois séculos,
enfrentam a complexidade, inerente e inevitável, dos ativismos que são
necessários para que se tornem realidade, em sua máxima potencialidade, as
possibilidades de um Estado de direitos fundamentais.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do
Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de
Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC ( www.idp.edu.br/observatorio ).
[1] “Não se trata de considerar qualquer tipode
possibilidade, de necessidade ou de realidade, mas também de fazê-lo com
algumas especificidades que se encontram no seio ou campo gravitacional do
Estado constitucional, âmbito onde todas elas se ponderam.” Cf. HÄBERLE, Peter.
Pluralismo y Constitución: Estúdios de Teoría Constitucional de la Sociedad
Abierta .Tecnos, Madrid, 2002, p. 60.
[2] Aqui, pela própria limitação da coluna, as
considerações foram ajustadas aos objetivos e padrões editoriais.
[3] Inevitável fazer referencia ao Centro
Brasileiro de Estudos Constitucionais – CBEC do ICPD/UniCeub, que tem nos
proporcionado ambiente institucional para partilharmos pesquisas, estudos e
reflexões.
[4] Esta reflexão também pode ser encontrada e
aprofundada em meu: Do ativismo judicial ao ativismo constitucional no Estado
de direitos fundamentais, in Revista Brasileira de Políticas
Públicas , 2015, no prelo.
[5] Para uma visão mais ampla, no bojo da
teoria geral dos direitos fundamentais, acerca das teorias dos direitos
fundamentais vide meu:Hermenêutica
de direitos fundamentais. Brasília:
Brasília Jurídica, 2005.
[6] CANOTILHO, J. J Gomes. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição . 7ª ed. Coimbra : Almedina,
2003, p. 1397.
[7] Como uma obra que retrata de forma séria e
fiel o referido embate recomendo leitura: GALVÃO, Jorge Octávio Lavocat. O
neoconstitucionalismo e o fim do Estado de Direito . São Paulo :
Saraiva, 2014.
[8] CANOTILHO, J. J. Gomes. Brancosos
e interconstitucionalidade: itinerários dos discursos sobre a historicidade
constitucional, 2ª
ed. Coimbra : Almedina, 2008, p. 180-181.
[9] Sobre uma abordagem detalhada sobre a as
metódicas de colisão, concorrência e restrição de direitos fundamentais, vide:
CANOTILHO, J. J Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição . 7ª ed. Coimbra : Almedina, 2003, p. 1268-1284.
[10] Quem se interessar pela doutrina
correspondente, vide: BACHOF, Otto.Normas
constitucionais inconstitucionais . Coimbra : Almedina, 2008.
[11] Sobre esta classificação, por todos vide:
ÁVILA, Humberto Bergman.Teoria
dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos ,
13ª edição. São Paulo : Malheiros, 2012.
[12] Uma proposta que se aproxima daquilo que
considero uma postura adequada acerca da aplicação da proporcionalidade como
decorrência da dogmática dos direitos fundamentais pode ser encontrada em:
SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável, in
Revista dos Tribunais , n. 798, 2002, p. 23-50
http://www.conjur.com.br/2014-dez-20/observatorio-constitucional-ativismos-sao-necessarios-estado-direitos-fundamentais
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