Licença para roubar: delação premiada (Petrobras)
Com base
nos viciados costumes sociais, políticos e mercantilistas tradicionais da nossa
história, a sensação nítida que brilha como o sol do meio dia é a de que alguns
donos do poder concederam a si mesmos a liberdade impudica e despudorada para
roubar impunemente. Por roubar, em sentido amplo, devemos compreender o
corromper (e ser corrompido), o furtar, o extorquir, o parasitar, o se
enriquecer ilicitamente etc. Em lugar da moral, prudência, moderação, trabalho,
estudo, aplicação, dedicação e afinco, toda nossa história está
paradigmaticamente marcada pela corrupção, temeridade, intemperança,
ociosidade, ignorância, dissipação e degeneração.
Costumamos
atribuir esses deploráveis vícios somente para a política e os políticos,
porém, verdade seja dita, da arena política essas máculas saltaram também para
as relações sociais (para a sociedade civil, ou vice-versa). De qualquer modo,
não há como não reconhecer que o singular mundo político, no extravasamento
exuberante de todos os vícios citados, conta com a dianteira, porque habituados
à falsificação de atas e de urnas, à fraude da lei, às artificiosidades das
chicanas judiciais, à traição dos amigos, à renegação dos princípios, ao
rebaixamento dos níveis mínimos das posturas éticas, ao aviltamento dos costumes,
resumindo toda a moral no triunfo e no bom êxito eleitoral, que se transformou
de meio em fim (veja Jornal de Timon, de João Francisco Lisboa, p.
309-10).
A escola
indecorosa e degradante da vida política brasileira, irrigada pela infindável
falta de escrúpulos de alguns mancomunados agentes econômicos e financeiros,
conta com fronteiras cinzentas, surpreendendo a cada dia no avanço dos seus
horizontes: os vícios e os crimes têm se multiplicado de uma forma espantosa e
abominável, eliminando-se todo tipo de discernimento entre o lícito e o
ilícito, entre o justo e o injusto, entre o moral e o imoral, tudo como fruto
de um embotamento ético assaz preocupante.
De vez em
quando, particularmente quando o desvio do dinheiro público se torna ostensivo
ou abusivamente excessivo, o esquema adredemente planejado (de imunidade dos
donos do poder) foge do controle. É nesse momento que a polícia apresenta algum
seletivo êxito.
Quando o
malfeito é descoberto, toda a cumplicidade criminosa entre os partidos e o
mundo empresarial é posta em xeque. Rompe-se a regra geral do silêncio
conivente, sobretudo e primordialmente por meio da delação premiada, da qual
agora está fazendo uso in extenso o ex-diretor da Petrobras,
Paulo Roberto Costa.
A delação
premiada, na medida em que implica uma traição e “deduragem” de terceiras
pessoas, é (eticamente) uma imoralidade, mas que se tornou útil e até mesmo
necessária (dizem seus sectários) naqueles países com capacidade investigativa
falida ou sensivelmente enfraquecida (como o Brasil). Quando os países se
sentem impotentes para descobrir em toda sua extensão os mais hediondos e
nefastos crimes contra a coletividade, sobretudo dos poderosos, eles se juntam
ao criminoso, para captar a sua prestimosa colaboração.
A
colaboração premiada, prevista na nova lei do crime organizado (12.850/13), da
qual a delação é uma espécie, permite ao delator quatro tipos de premiação: 1)
perdão judicial, 2) diminuição de 2/3 da pena, 3) sua substituição por penas
restritivas de direito ou 4) abstenção do início do processo.
É preciso
que a delação seja efetiva, ou seja, que produza concreto resultado positivo
durante a investigação ou no curso do processo (identificação de coatores ou
revelação da estrutura do crime organizado ou localização de vítima ou recuperação
total ou parcial do produto ou proveito do crime). O prêmio é aferido conforme
a efetividade da colaboração.
Todos os
resultados práticos citados são relevantes, mas especial atenção deve merecer a
restituição do “roubado”, por quem tem condições e bens para fazer a
restituição. Quem se apropria do alheio deve ser privado do próprio (já dizia
Beccaria, em 1764 – veja nosso livro Beccaria 250 anos, Saraiva -,
que sinaliza e benfazeja a pena de empobrecimento como adequada para essas
situações).
Quem
desse tema cuidou com acuidade invejável, no entanto, foi o padre Antônio
Vieira (1608-1697), autor de uma vastíssima obra moral-religiosa, de notável e
distinguido cunho crítico. No seu festejado Sermão do Bom Ladrão, o
autor nos deixou como legado um veemente discurso a respeito da ladroagem que
grassava em seu tempo (e que não se arrefeceu com o passar dos tempos). Para
ele o ladrão que tem bens com que restituir o que roubou (como é o caso do
Paulo Roberto Costa, cujas contas bancárias na Suíça ascendem a mais de US$ 25
milhões de dólares), toda a sua fé e toda a sua penitência não bastam para o
salvar, se não restituir.
Recorda
P. Antônio Vieira (segundo sua lógica moralista-religiosa) que nem mesmo
Cristo, na cruz, prometeria o Paraíso ao ladrão sem que restituísse (podendo) o
que surrupiou. Cristo, para Dimas, disse: Hoje serás comigo no Paraíso. Para
Zaqueu afirmou: Hoje entrou a salvação nesta tua casa. A salvação do ladrão
Dimas foi instantânea; a do larápio Zaqueu foi adiada. Qual a diferença?
P.
Antônio Vieira explica: “Dimas era ladrão pobre e não tinha com que restituir o
que roubara; Zaqueu era ladrão rico, e tinha muito com que restituir; Dimas era
ladrão condenado, e se ele fora rico, claro está que não havia de chegar à
forca; porém Zaqueu era ladrão tolerado, e a sua mesma riqueza era a imunidade
que tinha para roubar sem castigo, e ainda sem culpa” (Sermão do Bom Ladrão,
p. 27). Zaqueu somente foi perdoado quando prometeu restituir o roubado em
quádruplo. Moral da história: “A salvação [do ladrão rico] não pode entrar [não
pode acontecer] sem se perdoar o pecado, e o pecado não se pode perdoar sem se
restituir o roubado”.
Professor
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). [ assessoria de comunicação e imprensa +55 11 991697674 [agenda de palestras e entrevistas]
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