Joaquim Barbosa: popular ou populista?
Por força
da parábola “A tábua e os pregos” se sabe que uma ferida verbal
(uma ofensa) é tão maligna para a alma como uma agressão física. Quando você
ofende alguém, ficam as marcas. Você pode enfiar uma faca em alguém e depois
retirá-la. Não importa quantas vezes você peça desculpas, a cicatriz ainda
continuará lá. Joaquim Barbosa, que disse que vai deixar em breve a
magistratura, foi um juiz independente e corajoso, mas deixa cicatrizes
profundas nas almas de todas as pessoas que foram vítimas das suas
temperamentais ofensas. Muitos vão comemorar sua saída; outros irão lamentar
profundamente. Para alguns ele já vai tarde; para muitos ele fará muita falta
na desprestigiada magistratura brasileira. De qualquer modo, para quem nunca
acreditou na punição dos poderosos no Brasil, JB se mostrou, especialmente no
julgamento do mensalão do PT, um exemplo de juiz autônomo e idealista.
Precisamente
porque fugiu do figurino demarcado pelo exercício do poder no Brasil, JB se
tornou o mais popular julgador do país (de todos os tempos). Jamais um juiz da
Suprema Corte foi tão adorado, mas, ao mesmo tempo, tão odiado, inclusive pelos
seus colegas de tribunal, pelo seu irascível temperamento, pela sua
incapacidade de dialogar, de buscar consensos. Penso que a melhor comparação
para se definir JB é com Ayres Britto. A personalidade de ambos encaixa-se na
demarcação esquadrinhada por Nietzsche, no final do século XIX, que distinguia
duas morais: a nobre (aristocrática) e a plebeia (rancorosa). São duas escalas
de valores completamente opostas: guerras nobres, aventuras, a dança, os jogos,
os exercícios físicos, a poesia, o diálogo, a busca de consenso, as atividades
robustas, livres, alegres: isso tudo faz parte da moral nobre, que não tem nada
a ver a moral rancorosa, ressentida, odiosa, vingativa, impotente etc.
JB se mostrou
independente porque não compactuava com os grandes conchavos entre os donos do
poder (elites econômicas e políticas), terrivelmente perniciosos para os
interesses da nação. Mas ao mesmo tempo maltratava os advogados assim como seus
pares, mostrando-se muitas vezes (como diz a mídia compartilhada) um imbatível
“barraqueiro”, identificando-se nessas horas com o pensamento ressentido das
massas rebeladas. Daí, aliás, seu prestígio grandioso perante as massas de
todas as classes sociais. Respeitando-as, sabiamente decidiu não ingressar na
política partidária, que não é mesmo a sua praia (como disse FHC). A política
não é olocus adequado para quem gosta de tomar decisões sozinho,
sem apego, muitas vezes, às formas e solenidades (como fez no mensalão, ao não
separar o julgamento dos que não tinham foro privilegiado, negando-lhes o duplo
grau de jurisdição, assegurado pelo sistema interamericano de direitos
humanos).
JB, que
mandou para a cadeia quem violou as bases sagradas da democracia, comprando
votos de parlamentares venais e corruptos, se tornou extremamente popular
justamente porque conta com perfil populista. Nunca titubeou, mesmo como
magistrado ou presidente da Corte, em performar para as massas, usando
inclusive gestos e linguagem inteligíveis por elas. Nessa arte mostrou-se
insuperável. Proferiu votos importantes (quando aprovou o aborto anencefálico,
por exemplo), mas nunca deixou de se mostrar agressivo, autoritário e
deselegante em suas manifestações. Ficará para a memória do tempo como um juiz controvertido,
sem meio termo: tanto quanto todos os populistas da história (Getúlio, Jânio,
Peron etc.), sempre será amado por alguns e odiado por outros (sobretudo pelos
que ainda não curaram as cicatrizes nas suas almas dilaceradas pelas ofensas
barbosianas).
Publicado por Luiz Flávio Gomes
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente
do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz...
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