A LEI DA FICHA LIMPA E A SUA AFRONTA AO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
SÉRIE DE COMENTÁRIOS: O QUE É FICHA LIMPA?
A Lei da Ficha Limpa (LFL), é a Lei Complementar 135/2010, que alterou a Lei Complementar 64 de 18 de maio de 1990 (que versa sobre as inelegibilidades), e originou-se do Projeto de Lei Popular 518/09, o referido nome foi dado pela população através das entidades que encabeçaram o referido projeto.
O referido diploma foi objeto de polêmicas e discussões desde o seu nascedouro chegando a sua aplicabilidade. O que tornou-se, mais evidente pelo fato de que após passadas as eleições de 2010, muitos candidatos eleitos ficaram afastados do seu mandato aguardando o Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionar sobre a constitucionalidade da mesma e a sua aplicabilidade nas eleições de 2010.
Tivemos um empate, ficando 5 a 5 no placar dos Ministros, somente vindo a ser desempatado com nomeação do novo Ministro Luiz Fux.
Na presente explanação pretendemos discutir a Lei da Ficha Limpa a luz do princípio constitucional da presunção de inocência, levando em consideração as conquistas dos direitos e garantias individuais ao longo do tempo.
Somente com as revoluções sociais e políticas que sacudiram o mundo ocidental no final do século XVIII, sobretudo na America do Norte, na França e na Inglaterra (revolução industrial) é que a humanidade veio a praticar os direitos e garantias individuais, por exemplo: todos são iguais perante a lei, e, ninguém será considerado culpado (ou punido), sem o trânsito em julgado da condenação, seja civil ou penal.
As referidas conquistas foram sofridas, sendo originárias de guerras, revoluções e lutas que nos deixaram vivos nomes de pensadores e heróis do porte de George Washington, Bolívar, José Bonifácio, Locke, Rousseau, Montesquieu, Lincoln, Gandhi, Luther King, dentre tantos. O Pós II Guerra Mundial fez nascer para o mundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) consagrando, sem distinção no art. 21. o direito de votar e ser votado.
No Brasil, após a independência em 1822 apenas os grandes proprietários de terra podiam votar e ser votado. Décadas depois admitiram os bacharéis e os homens ricos. Somente no século XX igualaram-se os direitos das mulheres e homens alfabetizados (Carta de 1934), o que foi mantido na Lei Magna de 1946 para o exercício da cidadania - votar e ser votado- .
Na Constituição de 1988 os analfabetos passam a adquirir o direito de votar, mas, sem o direito a ser votado. Neste momento, deve ser questionado e refletido se as conquistas desses direitos plenos não estão sendo juridicamente desafiadas neste momento histórico que vivenciamos com o surgimento da Lei da Ficha Limpa? Com a justificativa de aplicação do princípio da moralidade no processo eleitoral não estamos abrindo mão ou destruindo princípios individuais de valores superiores? a exemplo da presunção de inocência.
Com a Lei da Ficha Limpa aqueles que foram condenados por um órgão colegiado ficam inelegíveis, mesmo que tenham recorrido para instância superior, conforme se verifica nas alíneas “c” e “d” do Art. 1º. da Lei Complementar 64/90, modificado pela Lei Complementar 135/2010 (Lei da Ficha Limpa), vejamos dispositivos:
d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado, em processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes; (Alínea com redação determinada na Lei Complementar nº 135, de 4.6.2010, DOU 7.6.2010)
e) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado, desde a condenação até o transcurso do prazo de 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, pelos crimes:
1. contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público;
2. contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência;
3. contra o meio ambiente e a saúde pública;
4. eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade;
5. de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública;
6. de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores;
7. de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos;
8. de redução à condição análoga à de escravo;
9. contra a vida e a dignidade sexual; e
10. praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando; (Alínea com redação determinada na Lei Complementar nº 135, de 4.6.2010, DOU 7.6.2010)
A alínea “d” diz que quem for condenado em processo por abuso de poder econômico ou político por órgão colegiado fica inelegível por 08 (oito) anos após as eleições que concorreu ou foi diplomado.
A alínea “e” trata da condenação por órgão colegiado nos dez crimes descritos no referido dispositivo.
A Constituição Federal no inciso LVII do Art. 5º. Vinca: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.
O referido dispositivo tem inspiração na Declaração dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948, que no art. 11 diz o seguinte: "Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa".
O principio da presunção de inocência é um desdobramento do princípio do devido processo legal também insculpido no inciso LIV do Art. 5º da Constituição Federal, o qual, diz o seguinte: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”.
O que entendemos por ser considerado culpado? Será que o dispositivo quis proteger somente a declaração final de culpa do acusado ou almejou também proteger os direitos? quais os bens protegidos pelos referidos dispositivos? Sem duvida podemos responder que o legislador pretendeu fazer com que enquanto não transitasse em julgado o processo, o acusado não poderia ser privado dos seus bens e claro que inserido nestes bens está sem duvida às garantias e os direitos assegurados pela Constituição Federal, entre eles o direito de gozar dos seus direitos políticos até que transite em julgado a decisão; a não ser que passemos a entender que os direitos políticos não são considerados como sendo um bem, um patrimônio do cidadão.
RUI BARBOSA[1], o paladino de nossos juristas, sintonizado com os acontecimentos mundiais, propalava:
"Não sigais os que argumentam com o grave das acusações, para se armarem de suspeita e execração contra os acusados. Como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus, enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito. {grifo nosso)"
Portanto, verifica-se que a presunção de inocência deve justamente pautar os julgados dos magistrados, para não deixar se contaminar pela gravidade da acusação; mas pelo contrário somente declarar culpado quando tiver a apuração das provas que comprovem tal fato.
Se pensarmos a Lei da Ficha Limpa como um instrumento em busca da implementação da moralidade no processo eleitoral não veremos nenhum vício; mas se pensarmos a luz de princípios constitucionais encontraremos óbices a alguns dos seus dispositivos.
No que pese muitos juristas e o Supremo Tribunal Federal já haver se posicionado pela constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, no que se refere às alíneas “d” e “e” do Art. 1º da Lei 64/90, modificada pela Lei Complementar 135/2010, continuamos com o nosso entendimento de que o texto fere o principio da presunção de inocência por retirar do acusado o direito de ser votado antes do transito em julgado da acusação que pesa contra o mesmo.
A iniciativa da sociedade em pedir que o legislador que impeça os condenados em segunda instância de serem candidatos seria desnecessária se o judiciário conseguisse fazer com que os processo caminhassem de forma célere, fazendo com que o transito em julgado ocorresse em tempo razoável e a suspensão dos direitos políticos também.
O Brasil cultua a ideia de que tudo se resolve com uma nova Lei, sem pensar na estrutura para fazer cumprir os diplomas legais. Em matéria publicada no Jornal o Globo e reproduzida neste Blog em 24.03.2011, os promotores do Rio de Janeiro e São Paulo alertam que provavelmente não terão como examinar todos os processos de pedido de registro de candidatura, fato que comprometeria a aplicação da lei em comento.
Com o presente texto estamos abrindo um espaço para discussão sobre as novas condições de elegibilidade impostas pela famosa Lei da Ficha Limpa, com uma série de comentários intitulada: o que é Ficha Limpa?.Todos os domingos iremos postar um comentário sobre cada condição acrescentada pela referida lei, mostrando os posicionamentos doutrinários e jurisprudências em linguagem acessível aos operários do direito e ao cidadão destinatário das normas.
Escrito por Manoel Arnóbio de Sousa
Direitos Reservados.
Mestre Arnobio: Tema excelente para uma discussão em classe, mesa redonda, entrevistas e até ...mesa de bar. O resultado será sempre o empate, tal qual foi no STF (que assisti todo, pelo gosto que tenho pela dialética envolvida).Os argumentos pró ou contra são bem embasados, deixando a conclusão sob a espada de Damocles. Talvez o gesto do Rei Salomão ao propor dividir a criança ao meio para atender às mães querelantes, fosse uma solução. Confesso que esta Lei tem minha simpatia. Representa para mim a esperança de frear o assalto ao poder, pelo voto contaminado, de quadrilhas formadas por politicos e sequazes, especializados em assaltar o patrimonio público. Melhor assim decidido pelos velhinhos do STF, que por "caçadores de marajás" ou pelos donos das armas travestidos de "salvadores da pátria", o que é possivel voltar a acontecer. É só ler a Historia do Brasil desde 1889...
ResponderExcluirSou pragmatico. Prefiro um inocente na cadeia junto com 1000 criminosos, que o contrario. In dubio...pro societas. A maior ameaça à democracia e ao estado de direito vem de dentro do proprio sistema, como o principio filosófico marxista e hegeliano já previa que "todo sistema contem em si o germe de sua destruição".
Um paralelo: qual empresa contrataria um funcionário que apresentasse um curriculo onde estivessem listadas as mais variadas condenações, em instancias as mais diversas, e alegasse inocencia pois no aguardo de recursos ao STF? E, se este candidato fosse recusado ao cargo por este motivo, ousaria ele recorrer à justiça sob a alegação de discriminação e outros direitos? Empregaria você no seu escritorio ou residencia, quem nem siquer foi indiciado, processado ou mesmo denunciado, se, por conhecimento público voce soubesse tratar-se de pessoa desonesta, perigosa, criminosa? Daria a ela a "presunção de inocencia" só para ser coerente com sua formação jurídica? Você votaria num Paulo Maluf, Renan Calheiros, Jader Barbalho et caterva? Provavelmente não, pois voce sendo bem informado - diferente da maioria de nosso eleitorado - formou opinião sobre os mesmos, como eu. A "Lei Ficha Limpa" vai excluir alguns inocentes, mas vai reter na malha fina um monte de escória. Como a radioterapia: mata algumas células boas, para eliminar todas as células cancerosas, salvando o organismo maior. Forçando a metáfora, chamo a biblia em testemunho: Jeová, o Supremo Juiz, enviou o dilúvio destruindo toda a humanidade( nenhuma criança inocente?)sem usar o preceito de "presunção de inocencia". Noé deve ter tido bom advogado e se safou! Se nem no Estado de Direito Divino se aplica...
Finalizo usando o velho latim para dar um verniz eloquente e pretencioso ao meu arrazoado: SUMMUM JUS, SUMMA INJURIA. No caso em tela, iniquidades são praticadas em nome da aplicação rigorosa de principios constitucionais, ao fazer deles regras para deuses e não para homens sabidos.
Francisco - um promotor da justiça seletiva