“O poder só é efetivado enquanto a palavra e o ato não se divorciam, quando as palavras não são vazias e os atos não são brutais, quando as palavras não são empregadas para velar intenções, mas para revelar realidades, e os atos não são usados para violar e destruir, mas para criar relações e novas realidades.” (ARENDT, Hannah Condição Humana, 2007, p. 212)

A vida extraeleitoral dos partidos políticos

Nem só da Justiça Eleitoral vivem os partidos. Além de agremiações políticas, eles são associações e pessoas jurídicas, reguladas em muitos aspectos pela legislação não eleitoral. Nesses casos, é a Justiça comum e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) que decidem a vida dessas entidades. E, apesar de críticas à “judicialização” da política, são disputas entre os próprios partidários que resultam nos processos.

São recorrentes, por exemplo, os casos que discutem estatutos, regras e procedimentos partidários referentes à filiação e convenções. Para o STJ, quando essas disputas antecedem o período eleitoral, compete à Justiça comum o julgamento. É o que ilustra o Conflito de Competência 105.387.

A ação é de um grupo que teria sido desfiliado arbitrariamente pelo presidente de um diretório municipal do PMDB. Segundo alegavam, o presidente teria feito com que assinassem um documento que, supostamente, viabilizaria a candidatura de sua esposa às eleições de 2008, mas cujo texto tratava de pedido de desfiliação dos signatários, às vésperas da convenção municipal.

O então julgador do conflito, hoje aposentado, ministro Fernando Gonçalves, explicou: “Não se trata, pois, de matéria eleitoral a ser dirimida pela Justiça Especializada, mas de contenda de cunho eminentemente civil, no âmbito das relações privadas de pessoas físicas, relativa a divergências ocorridas antes das eleições, em assuntos interna corporis de agremiação partidária e seus filiados.”

Outro caso similar, também do PMDB, tratava da intervenção do diretório nacional do partido no diretório estadual do Espírito Santo. Este ingressou com ação cautelar para paralisar o procedimento administrativo de intervenção, mas o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) negou a liminar porque a hipótese seria de competência da Justiça Eleitoral.

Mas o STJ determinou o seguimento da ação. “Trata-se de ato de intervenção oriundo do Diretório Nacional, estando configurada a natureza interna corporis, a justificar plenamente a competência da Justiça Comum na trilha de precedentes”, afirmou a decisão do então ministro Carlos Alberto Direito.

“Judicialização”

Mas, mesmo quando a questão é eminentemente política, os partidos tentam “judicializá-la”. Como ocorreu, entre outros, no Recurso em Mandado de Segurança 19.809. Nele, um prefeito cassado apontava falhas que, em seu entender, deveriam anular o procedimento.

Segundo alegou, a Câmara Municipal não respeitou a proporcionalidade dos partidos políticos na composição da comissão processante, indeferiu a produção de provas necessárias à sua defesa e não motivou o ato de cassação. Para o ministro Mauro Campbell, essas questões não são passíveis de julgamento judicial.

“Discutir se houve obediência à proporcionalidade possível na distribuição de assentos na comissão processante é ato meramente político do Poder Legislativo municipal, não sujeito a controle do Judiciário”, afirmou. “Da mesma forma, no caso, analisar (...) seu comportamento de acordo com a dignidade e o decoro do cargo é matéria que diz com o próprio mérito do ato político-administrativo de cassação, com a justiça ou injustiça da decisão tomada pela comissão processante, controvérsia esta que está fora do alcance do Poder Judiciário”, completou o relator.

Indenização

O STJ também já decidiu sobre a responsabilidade do partido político pela falta de registro de candidato aprovado em convenção. Nas eleições de 2000, um político deixou de ser registrado na Justiça Eleitoral como candidato do partido, apesar de ter sido escolhido em convenção, por erro do diretório local.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou o partido em R$ 30 mil pelos danos causados ao político. No STJ, a condenação foi aumentada para R$ 100 mil. O pré-candidato impedido de concorrer pleiteava mais de R$ 400 milhões de indenização.

Se nesse caso o partido deixou de atender o filiado, em outros as agremiações tentam ir além do que podem. O STJ entende que o partido não tem legitimidade para atuar em favor de membro que responde a processo por improbidade administrativa.

No Recurso Especial 1.184.132, o PMDB pleiteava o reconhecimento da sua legitimidade para apelar como terceiro prejudicado pela sentença que condenou um filiado seu por atos de improbidade administrativa quando este presidia a Assembleia Legislativa do estado. Seu interesse estaria no fato de que a suspensão dos direitos políticos do político impedia a ocupação de vaga do partido na Assembleia, aberta em razão de cassação do primeiro suplente e renúncia do titular para concorrer ao cargo de prefeito.

“Nas enfadonhas razões do Recurso Especial, o PMDB aponta violação a diversos dispositivos do Código de Processo Civil (CPC) e da Lei n. 8.429⁄1992, no intento de anular a condenação do seu filiado pela prática de improbidade administrativa. A irresignação não tem como prosperar”, afirmou o ministro Herman Benjamin ao julgar o recurso.

“O prejuízo sustentado pelo PMDB não decorre da sentença condenatória de seu filiado, e sim de fatos posteriores e alheios ao litígio, especificamente a renúncia de mandato eletivo por deputado titular e a cassação do seu primeiro suplente, situação que acarretou a ausência de representação na Assembleia Legislativa. Porém, insisto, isso não lhe confere legitimidade para ingressar no feito em que se discute a improbidade administrativa”, completou.

Campanhas danosas

Mesmo por fatos ocorridos em período eleitoral, a competência pode ser da Justiça comum. É o caso de um pedido de indenização por danos morais em favor de então candidato à prefeitura de Londrina (PR). O Tribunal paranaense entendeu que o adversário político do autor da ação de indenização agiu com o objetivo de caluniar o candidato, denegrir sua imagem e influir no resultado da eleição.

Conforme explicou o ministro Luis Felipe Salomão, as pessoas públicas, ainda que mais suscetíveis a críticas, não perdem o direito à honra. “Alguns aspectos da vida particular de pessoas notórias podem ser noticiados. No entanto, o limite para a informação é o da honra da pessoa. Com efeito, as notícias que têm como objeto pessoas de notoriedade não podem refletir críticas indiscriminadas e levianas, pois existe uma esfera íntima do indivíduo, como pessoa humana, que não pode ser ultrapassada”, asseverou o relator.

Ele também citou decisão anterior do STJ sobre os mesmos fatos para avaliar o valor da indenização fixada. Segundo esse julgado (REsp 575.696), os prejuízos políticos da ação precisam ser provados. No caso, o político manteve carreira política de êxito, sendo, à época do julgamento, deputado federal pela quarta vez seguida, com a segunda maior votação do partido e a oitava do estado, com mais de 110 mil votos em 2003, já após a campanha municipal. Antes, havia sido vereador e prefeito por várias vezes.

“É, sem dúvida, um vitorioso nos embates eleitorais. Vale lembrar que os fatos narrados nesses autos são de 27⁄9⁄1996, um ano após a eleição do autor para o segundo mandato de deputado federal e três anos antes da eleição para o terceiro mandato”, afirmou o então ministro Carlos Alberto Direito. Diante da ausência de maiores prejuízos ao autor da ação, o ministro Salomão, manteve a indenização no valor de R$ 7,5 mil fixados pela Justiça paranaense.

Chegou ao STJ, também, uma ação de pessoa que teve sua imagem usada indevidamente em campanha eleitoral. A fotografia usada era de meses antes do início da propaganda eleitoral, e era usada tanto em plano geral quanto com foco apenas na autora e no candidato, em close. Mesmo notificado extrajudicialmente para interromper o uso indevido, o partido manteve a propaganda, razão pela qual foi condenado em R$ 5 mil.

No STJ, o partido alegava que não teria cometido ilícito, nem haveria dano no uso, porque não vinculava a imagem da autora a nada ruim ou depreciativo. A ministra Nancy Andrighi não aceitou que o recurso fosse apreciado. Para ela, reavaliar o decidido pelo tribunal local exigiria análise de provas, o que é incabível em recurso especial.

Empréstimo milionário

Um dos casos mais rumorosos julgados pelo STJ envolvendo partidos trata do financiamento de campanhas. Uma suposta dívida de R$ 100 milhões da SMP&B Comunicação Ltda. ao PT em 2004 terá que ser julgado novamente pela Justiça do Distrito Federal.

A empresa entrou com ação de cobrança porque teria fornecido, entre 2003 e 2004, recursos financeiros no valor de R$ 56 milhões ao diretório nacional do partido, a pedido de seu tesoureiro-geral e secretário de Finanças e Planejamento, a título de empréstimo. A SMP&B alega que precisou arcar, além dos valores, com seus tributos, porque para financiar o partido, contratou empréstimo junto aos bancos Rural S/A e BMG S/A. Esses encargos corresponderiam a R$ 44 milhões.

Para o PT, a ação seria improcedente, porque não teria sido firmado qualquer contrato de empréstimo com a empresa e porque o tesoureiro não teria poderes estatutários para contrair empréstimos em nome do diretório.

Na fase de produção de provas, a SMP&B pediu a oitiva de testemunhas e perícia técnica. O PT propôs o julgamento antecipado da lide, por desnecessidade de demais provas, e, de forma subsidiária, a oitiva de testemunhas. A perícia foi autorizada, e as partes apresentaram seus quesitos. Mas, antes de ser efetivada a perícia, o juiz julgou a ação improcedente, porque a matéria seria predominantemente de direito. No recurso ao STJ, a empresa alega que tal julgamento cerceou seu direito de defesa.

Segundo o ministro Massami Uyeda, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) entendeu que o suposto repasse de valores da empresa ao partido não tratava de empréstimo, mas de “esquema espúrio e dissimulado de distribuição de dinheiro”, configurando simulação. Por isso, negar à empresa a produção de prova que visa comprovar exatamente o caráter de empréstimo dos atos praticados violaria seu direito ao contraditório.

“É certo que a questão do deferimento da produção de provas depende de avaliação do juiz, dentro do quadro fático existente e da necessidade das provas requeridas. Assim, cabe ao magistrado da causa analisar o cabimento da produção de provas, deferindo ou não a sua produção”, ponderou o relator.

“Entretanto, bem de ver que, na espécie, a hipótese é outra e, por conseguinte, outra resposta é de ser dada, pois o r. Juízo a quo [de origem], em ato judicial anterior, deferiu a produção da prova pericial. Porém, ao examinar a controvérsia principal dos autos – existência ou não de mútuo feneratício –, entendeu expressamente que ‘(...) Contrato típico de empréstimo (mútuo feneratício) entre as partes, certamente, não houve’, completou.

Para o ministro, o caráter controvertido da matéria exigiria melhor instrução probatória. Ele apontou também que a jurisprudência do STJ entende haver cerceamento de defesa quando o julgador indefere a demonstração de fatos controvertidos, cujo esclarecimento seja necessário e relevante para o julgamento. O processo foi devolvido à vara de origem em março, para ser retomado desde a fase de produção de provas
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